As empregadas domésticas que jamais irão para a Disney

O ministro quanto mais descontraído mais ele mesmo, burguês perigoso, bufão revelador da sua classe, da sua igualha.

Urariano Mota

Fonte: Vermelho
Data original da publicação: 14/02/2020

O Ministro Paulo Guedes, aqui e ali, tenta ser humorista daquele gênero da comédia stand up. Nessas ocasiões, ele se revela um burguesão que comete maravilhas, quando fala de improviso como nesta semana:   

Todo o mundo ia para a Disneylândia, empregada doméstica ia para a Disneylândia, era uma festa danada!”

De imediato, observo que ele se referiu às domésticas como empregadas nordestinas. Em dúvida, percebam que ele usa a palavra “danada”. É claro, esse adjetivo é legítimo do português em todo o Brasil, mas é entre o povo nordestino que ele adquire uso corrente de coisa excessiva, intensa,  ou como cantava Luiz Gonzaga, danado de bom. Empregada nordestina – até ela! – em Disneylândia só podia mesmo ser uma festa danada. 

Em segundo lugar, o ministro quanto mais descontraído mais ele mesmo, burguês perigoso, bufão revelador da sua classe, da sua igualha. E nesse particular, ele expressa os costumes seculares da categoria onde vive. Está na sua carga genética, está na sua formação. Isso quer dizer, ele fala como a canalha que tenho visto em várias ocasiões. Lembro que no aeroporto de Guarulhos eu vi Danielle Winits, então famosa atriz  da Globo, muito envolvida com o seu notebook, concentradíssima, enquanto o filhinho de cabelos louros berrava. Para quê? A sua empregada, vestida em odioso e engomado uniforme, aquele que anuncia “sou de outra classe”, cuidava para que a perdida beleza da atriz não fosse importunada. Tão natural… os fãs de telenovelas não viam nada de mais na mucama no aeroporto, pois faziam gracinhas para o bobinho lindo.

Em outra ocasião, numa terça-feira de carnaval à noite, vi no Recife uma jovem à minha frente, empenhada em ver a passagem de um maracatu. Tão africano, não é? Junto a ela uma senhora – desta vez sem uniforme, mas carregando no rosto e modos a servidão – abrigava nos braços um bebê. Os tambores, as fantasias, eram de matar qualquer atenção dirigida à criança, que afinal estava bem cuidada, sob uma corda invisível que amarrava a empregada. Então eu, no limite da raiva, ofereci o meu lugar à sua escrava sobrevivente, com a frase: “a senhora, por favor, venha com o seu filho aqui para a frente”. A empregada quis se explicar, coitada, morta de vergonha, enquanto a doce mamãe não entendia o chamamento irônico, pois me olhava como se eu fosse um marciano. Espantada, parecia me dizer: “como o meu filho pode ser dessa aí?”.

O desconhecimento de direitos elementares às empregadas domésticas, como privacidade, respeito, a falta de atenção para ver nelas uma pessoa igual aos patrões, sobrevive às mudanças legais. É histórico no Brasil, é como se estivesse no sangue, como se fosse genético, de um caráter irreprimível. Até antes delas vão a democracia e a igualdade. A partir delas é outra história. Quantas vezes vemos nos restaurantes jovens casais com suas lindas crias, tendo ao lado as escravas, que nem sequer têm direito a provar da bebida e da comida? Isso nos domingos e feriados! É justo, não é? A cidadania só alcança os iguais.

Em todas as situações desconfortáveis, se ousamos estranhar, ou agir com pelo menos um olhar atravessado para essa infâmia, recebemos a resposta de que as domésticas são pessoas da família. Parentes fora do sangue, apenas separadas por deveres, notamos. É o que se pode chamar de uma opressão disfarçada em laços afetivos. A ex-escrava é considerada como um bem amoroso, íntimo, mas que por ser da casa come na cozinha e se deita entre as galinhas do quintal. O que, afinal, é mais limpo que se deitar com os porcos no chiqueiro. Não estranhem, porque não exagero. Não faz muito  tempo no Recife era assim. E por que estranhar esse tratamento? Olhem os grandes e largos e luxuosos apartamentos do Rio e de São Paulo, abram os olhos para os minúsculos quartinhos de empregadas, entrem nos seus banheiros, que Millôr dizia serem a prova de que no Brasil empregadas não têm sexo no WC.

Esse “humor” do ministro foi certa vez expresso por um desembargador aposentado. Ele também tentou ser humorista à custa dos excluídos da nossa harmoniosa sociedade de classes. E publicou um artigo, que mais se devia chamar um termômetro moral da nossa elite, em que pôs o excelso título de “Pequeno dicionário da empregada doméstica”. Não viesse de quem veio, de um indivíduo que ocupou altos cargos na Justiça do país, o artigo seria deitado ao limbo, para o justo repouso no esquecimento. O texto foi publicado no magnífico órgão de imprensa da Associação Paulista dos Magistrados. 

Segundo o preclaro e excelso ex-magistrado, este seria o “dicionário” das empregadas domésticas, o pequeno dicionário das empregadas para ser lido pelas classes cultas, do gênero e classe de juízes como ele:

Denduforno – dentro do forno
Dôdistongo – dor de estômago
Doidimai – doido demais
Dôsitamu – dor de estômago
Gáscabô – o gás acabou
Iscodidente – escova de ente
Issokipómoiá – isto aqui pode molhar
Ládoncovim – lá de onde que eu vim
Lidialcom – litro de álcool
Lidileite – litro de leite
Mardufigo – mal do fígado
Mastumate – massa de tomate
Nossinhora – nossa senhora
Óikichero – olha que cheiro
Óiprocevê – olha pra você ver
Óiuchêro – olha o cheiro
Oncotô – onde que eu estou
Onquié – onde que é
Onquitá – onde está

Sua excelência nem imaginava que os brutos migrantes dos sertões nordestinos carregam, além da miséria, uma gramática que é uma história da língua. Quando eles dizem “figo”, em lugar de “fígado”, ou “hay”, em lugar de “há”, ou “in riba”, em lugar de “em cima”, ou mesmo “joga no mato”, por “deixa fora, joga fora”, essas palavras, esses modos e conteúdos de fala não nasceram de uma carne e sangue e lugar inferiores. Graciliano Ramos, um clássico de homem e de escritor da língua portuguesa, quando estava em dúvida sobre a regência de um verbo, fechava os olhos e procurava a lembrança longínqua da sua infância no sertão de Pernambuco. A gramática normativa mais tarde confirmava a sua recordação. 

O certo, enfim, é que o tratamento dado às empregadas domésticas é uma atualização da frase genial de Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Ou como o traduz o ministro em português degenerado, primitivo: viajar para a Disney era uma festa danada. Que suba o dólar. Cada macaco no seu galho. 

Urariano Mota é jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”.

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