Após falência, fábrica é ocupada e administrada por trabalhadores na Argentina

No dia 11 de agosto, os trabalhadores da gráfica RR Donnelley Argentina chegaram à porta da fábrica e encontraram um cartaz que anunciava a quebra da empresa. No mesmo dia, a Comissão de Fábrica decidiu, em assembleia, ocupar a planta da empresa e colocar as máquinas para trabalhar sob gestão dos – até então – empregados.

A multinacional de origem norte-americana, fundada em Chicago em 1864, operou na Argentina durante 22 anos e empregava mais de 400 pessoas. Em frente à empresa, situada na altura do quilômetro 36,7 da via expressa Panamericana, na localidade de Garín, região metropolitana de Buenos Aires, os trabalhadores montaram um acampamento permanente para evitar que as máquinas sejam retiradas da fábrica e, assim, garantir os empregos.

“Fundos abutre”

A declaração de falência da Donnelley passou a ser parte do debate sobre a disputa entre a Argentina e os chamados “fundos abutre”, que tentam cobrar na Justiça norte-americana o valor integral de bônus da dívida que adquiriram no mercado secundário depois da suspensão de pagamento em 2001.

Na semana em que a multinacional declarou a quebra, a presidente Cristina Fernández de Kirchner anunciou que o Estado iria denunciar a Donnelley por delitos econômicos e acusou a empresa de causar “temor entre os trabalhadores.” A mandatária apontou que parte da gráfica está em mãos de fundos de investimento que teriam relação com o bilionário Paul Singer, dono do NML Capital, um dos “fundos abutre”.

Jorge Medina, da Comissão de Fábrica, confirma que o volume de trabalho não havia diminuído. Ele acusa a empresa de fazer manobras para justificar a falta de solvência. “Por um lado, pedia que fizéssemos horas extras, por outro, remanejava parte da produção a outras gráficas, sem necessidade”, relata.

Fotografia: Aline Gatto Boueri
Jorge Medina, da Comissao de Fábrica: “maior desafio agora é ganhar a confiança dos clientes para que mantenham a demanda”. Fotografia: Aline Gatto Boueri/Opera Mundi

A Afip (Administração Federal de Ingressos Públicos) – a Receita argentina – apresentou denúncias à Justiça por quebra fraudulenta e pediu a revogação da falência da Donnelley. Enquanto isso, o deputado Nicolas del Caño, que integra a Frente de Esquerda pelo PTS (Partido dos Trabalhadores Socialistas), ligado à Comissão de Fábrica, apresentou um projeto para que a planta, as máquinas e o material da empresa sejam declarados de utilidade pública, sujeitos à expropriação.

O site da RR Donnelley Argentina está fora do ar há uma semana. Mas, em comunicado de imprensa divulgado em 16/08, a empresa afirmou que acudiu ao governo e ao Ministério de Trabalho da Nação e da Província de Buenos Aires para obter subsídios e armar um plano de crise que evitasse a falência. No entanto, a gráfica declarou que “não foi possível encontrar soluções” para a crise que enfrenta, “o que inclui aumento dos custos com trabalhadores, inflação, incremento no custo de materiais, desvalorização e a impossibilidade de pagar dívidas.”

Os trabalhadores da Donnelley consideram que o maior desafio do projeto é a alegação de que a política de estatizações do governo alcança os serviços públicos – como a petrolífera YPF, as Aerolíneas Argentinas e até mesmo outra gráfica, a ex-Ciccone, que imprime o papel-moeda e está no centro de um escândalo de corrupção que envolve o vice-presidente, Amado Boudou.

“Hoje, nós produzimos revistas de fofocas para a classe média. Mas podemos prestar serviços mais úteis, como a impressão de cartilhas e material gráfico para diferentes órgãos estatais”, reconhece Hernando Charles, que trabalhava no controle de qualidade até a reconfiguração da fábrica com a gestão nas mãos dos trabalhadores.

Sem patrão

Uma semana depois da declaração de falência, as rotativas imprimem uma das revistas mais vendidas em bancas de jornal da capital argentina, a Paparazzi, dedicada a fofocas do mundo das celebridades.

Fotografia: Aline Gatto Boueri
Trabalhadores em máquinas da Donnelley; operários tomaram controle da fábrica. Fotografia: Aline Gatto Boueri/Opera Mundi

Ainda sem reconhecimento legal os trabalhadores da Donnelley pressionam pela “expropriação e estatização sob controle operário”, como insiste Medina. “O maior desafio agora é ganhar a confiança dos clientes para que mantenham a demanda”, avalia Medina. “Depois, o reconhecimento legal nos permitiria emitir recibos e receber um salário no fim do mês.”A reportagem de Opera Mundi visitou a gráfica, onde o clima é ameno apesar das incertezas. Em meio ao barulho das máquinas, risos e piadas entre os companheiros de trabalho fazem contraste com a sala vazia do gerente: na cadeira, o jaleco pendurado e, nas paredes, frases que parecem saídas de um manual para “líderes”. Por ironia, a mais visível, escrita sobre um cartaz amarelo, prega: “seja dono dos resultados”.

Charles mostra as máquinas ligadas e reflete sobre a experiência de “trabalhar sem patrão”. “Essa experiência é um grão de areia para a construção de uma sociedade onde o trabalho seja em função do bem comum.”

O modelo de “expropriação e estatização sob controle operário” prevê que o Estado assuma os prejuízos da empresa ao expropriá-la e se encarregue de pagar os salários sob as condições que existiam antes da declaração de falência. No entanto, a exigência dos trabalhadores da Donnelley é que a fábrica seja gerida por eles.

História

Durante a crise que a Argentina atravessou a partir de meados dos anos 1990, que teve o ponto máximo com a moratória de 2001, muitas empresas foram recuperadas por trabalhadores depois de declararem falência.

María de los Angeles, da Comissão de Mulheres da Donnelley – conformada por companheiras dos trabalhadores, quase todos homens – sublinha que a situação de 2014 é muito diferente daquela que o país vivia em 2001. “Na década de 1990, por conta da desindustrialização e desocupação, o grau de organização era muito menor. Hoje somos mais conscientes que em 2001”.

O caso da fábrica de cerâmicas Zanon, da província (estado) de Neuquén, é um caso exitoso desse modelo de organização – e um exemplo para os trabalhadores da Donnelley. No final de 2012, depois de 11 anos de luta, a empresa foi expropriada e entregue à Cooperativa Fa.Sin.Pat (Fábrica Sem Patrão), sob controle operário.

Outro símbolo do movimento de recuperação de empresas é a IMPA (Indústria Metalúrgica e Plástica Argentina), fundada em 1910 e gerida por uma cooperativa de trabalhadores desde 1998. Hoje, a fábrica abriga um Centro Cultural, a Universidade dos Trabalhadores e um Bacharelato Popular (equivalente ao Ensino Médio). Hoje, os trabalhadores da IMPA ainda lutam pela expropriação definitiva.

Fonte: Opera Mundi
Texto: Aline Gatto Boueri
Data original da publicação: 27/08/2014

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