A terceirização na China e suas lições para o Brasil

A precarização dos contratos em si não é o maior problema, mas sim a perda de segurança legal, financeira e corporal.

Rosana Pinheiro-Machado

Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 24/04/2015

No dia 13 de maio de 2013, Liufu Zong não acordou às sete da manhã para ir trabalhar como fazia diariamente em sua rotina de trabalho na fábrica Jinchuan Electronics Co Ltd, na cidade de Dongguan, na China. Seus colegas de dormitório estranharam o sono estendido e logo perceberam que o menino, de apenas 14 anos, estava morto. Zong parou de estudar aos 12 anos para ajudar seu pai a sustentar uma família de dez pessoas. Aos 13, decidiu migrar para a cidade para tentar melhorar de vida. Em poucos meses de muito trabalho, o menino não resistiu e veio a falecer por causas não reveladas.

O diretor de recursos humanos da empresa atribuiu a morte do menino ao seu estilo de vida “Eu ouvi dizer que ele passava o tempo todo na internet até tarde vendo conteúdo impróprio” – conforme noticiou a Xinhua. O pai de Zong, entretanto, alegou que seu filho era saudável e estava fazendo cinco horas extras diariamente, além de trabalhar em um ambiente tóxico. Os representantes do governo chinês pouco discutiram a ilegalidade do excesso de horas extras. Eles disseram que a idade do jovem funcionário se justificava porque a contratação era terceirizada. O diretor da fábrica disse que não tinha como ver que o menino era tão jovem – o que foi confirmado por uma autoridade da polícia local em sua investigação, que alegou que “O menino falsificou seus documentos, a empresa que contratava não tinha como saber sua idade”.

No caso em questão, as responsabilidades são vagas. As autoridades locais defenderam o empresário, alegando que ele havia sido enganado e a responsabilidade é transferida para a firma de contratação, que não sofreu lesão alguma. Quem pagou a conta é o jovem menino, que saiu do campo para melhorar de vida, mas que teve sua vida e seus sonhos abortados. Ao chegar à cidade, foi trabalhar em uma fábrica que adota o modelo predominante de contratação na China, marcado pela terceirização dos contratos e pela consequente flexibilização de direitos trabalhistas. Seu destino foi trágico e sua família ficou desamparada – exatamente como outras tantas milhões de pessoas.

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Há mais de uma década, acompanho diariamente casos como o de Zong, que estão longe de ser exceções. São banais, na verdade. São números que ultrapassam com facilidade a casa dos sete dígitos: casos de dedos perdidos em fábricas, mutilações diversas, mortes por intoxicação por pó metálico, pneumonia e incêndios. O não cumprimento de direitos e sequer do salário mínimo são problemas rotineiros.

Em um famoso escândalo com um recall de uma marca global de brinquedos que continha elementos nocivos à saudade da criança, a corporação culpou o serviço terceirizado da China, que culpou o seu serviço terceirizado de fornecimento de materiais. O mesmo aconteceu com remédios de uma multinacional farmacêutica que causou a morte de centenas de pessoas pelo mundo. A farmacêutica culpou a firma de terceirização, que culpou a farmacêutica. E assim fica um jogo de empurra-empurra em que todo mundo ganha: o governo, a pequena firma e a grande corporação. Quem perde é o Zong e o João.

Um dos maiores problemas acarretados pela terceirização não é precarização dos contratos em si, mas o que isso resulta: a perda de segurança legal, financeira e corporal. Isso ocorre simplesmente porque a responsabilidade sobre a integridade dos funcionários tornam-se vagas. Grávidas são substituídas por outras mulheres, simples assim. Eu lembro-me muito bem no dia em que perguntei ao empresário Shang, de uma fábrica de brinquedos no distrito de Pinghu na China, se ele não se incomodava com as crianças que estavam trabalhando para ele em um feriado. Ele me respondeu: Crianças? Não, a firma que nos fornece funcionário respeita a lei chinesa. Eu pensei que eu deveria estar louca vendo jovens vidas, visivelmente exaustas, que não passavam de dez anos.

Engana-se quem pensa que o problema da China é a falta de leis. O país passou de um niilismo legal dos tempos maoístas a uma revolução legal nas últimas décadas. Hoje, a lei conta com 107 artigos e treze capítulos. Diversas outras resoluções e esferas dão respaldo aos direitos trabalhistas. Desde os anos 1990, implementou-se a Lei da União do Comércio, a Lei do Contrato do Trabalho e a Lei de Mediação das Disputas de Emprego, etc. Trinta mil novas emendas surgiram na legislação chinesa nos últimos anos. O problema da China, portanto, não é a lei fraca. O problema é a brecha da lei. E a terceirização é decisiva nesse processo que flexibiliza responsabilidades.

É exatamente esse o destino que aguarda o Brasil. Discute-se colocar por água abaixo uma das áreas em que o País é vanguarda e modelo para o mundo: os direitos trabalhistas. Nos últimos dias, com o debate sobre a terceirização do trabalho e a recente aprovação da PL 4330 no Congresso Nacional, muitos têm se questionado se Brasil irá se tornar a China. Estou convicta que não. Será muito pior.

É evidente que os problemas trabalhistas da China vão além questão da terceirização, e se agrava com a imigração ilegal interna, entre aqueles que se situam fora do sistema do registro doméstico nacional (Hukou), entre outras questões. Mas a China, por outro lado, goza de crescimento econômico constante que nunca baixou dos 7%. Já a economia brasileira, depois do milagre dos 7% de 2010, tem ficado nos minguados 1% ou 2% a cada ano. A grande diferença entre a China e o Brasil, portanto, é que o primeiro vive um crescimento extraordinário e o Brasil passa por uma crise social e econômica profunda.

O Brasil, consequentemente, não vai criar mais empregos com a terceirização. O que deve acontecer é o alívio do bolso do empresariado nacional que, em tempos de crise, pressiona o Congresso para aliviar a carga tributária alta que estrangula o setor. A flexibilização não deve atrair empresas estrangeiras para o Brasil: o País está com a economia frágil, apresenta risco para os investidores e possui diversos outros impedimentos que a China e outros países asiáticos superam com facilidade. Por exemplo, o preço chinês, que não se baseia somente na exploração da mão-de-obra, mas também no valor de sua moeda, o Yuan RMB.

A China explora a classe trabalhadora em tempos de ascensão e abundância, em tempos de remover milhões de pessoas da miséria e da fome do campo. O Brasil sonda terceirizar o trabalho em tempos decadência e de crise. E a diferença disso é enorme e os efeitos serão trágicos: sistemas semiescravos, trabalho intensivo, falta de oportunidades no horizonte, muita exaustão e pouco dinheiro no bolso do João. Ao contrário da China, o que está para acontecer no Brasil não é geração de emprego. O nome disso, é importante ficar bem claro, é arrocho. E quem paga a conta, mais uma vez, são os trabalhadores. O João. A Maria. Eu e você. A Deus dará.

Rosana Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford.

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