A teoria da dependência: 50 anos depois

Claudio Katz. Fotografia: IELA UFSC

Comentário sobre o livro recém-editado de Cláudio Katz.

Luís Eduardo Fernandes

Fonte: A terra é redonda
Data original da publicação: 18/01/2021

Cláudio Katz é um prestigiado economista marxista argentino. Possui uma vasta obra, com livros e artigos publicados em diversos idiomas. El porvernir del socialismo (2004), Las disyuntivas de La izquierda en América Latina (2008), Bajo El Imperio del Capital (2011) e Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular, 2016), são alguns bons exemplos de sua produção sempre identificada com os ideários da “Pátria Grande” e a perspectiva socialista.

Livro vencedor do prêmio Libertador de Pensamento Crítico, A teoria da dependência: 50 anos depois reúne uma série de artigos e ensaios a fim de apresentar uma interpretação original da dependência no bojo da tradição marxista. No Brasil, em especial em alguns círculos acadêmicos e políticos, a teoria marxista da dependência (TMD) e a divulgação da obra de Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, com justeza, vêm adquirindo mais audiência e adeptos na última década. Para além de realizar um mero balanço epistemológico do tema, o economista argentino consegue produzir uma interpretação original da dependência a fim de atualizá-la diante dos novos desafios contemporâneos impostos pelo capitalismo e pelo imperialismo.

O livro possui uma estrutura sugestiva, provocante e bem elaborada. Apesar de ser acessível, deve ser lido com calma e atenção, pois em cada capítulo Katz enfrenta alguma importante polêmica pretérita ou presente. Ao enfrentar as polêmicas, sem tergiversar, o autor produz um caminho próprio para as suas investigações e interpretações dos fenômenos. Sem dúvida, será muito difícil para o leitor atento não questionar parte das críticas ou conclusões de Katz. No entanto, seu mérito reside justamente nessa característica rebelde e questionadora, sem abrir mão do rigor teórico e da consequência política na luta de classes.

A primeira parte do livro é destinada ao debate sobre a relação centro-periferia na tradição marxista anterior à teoria marxista da dependência. A começar pelo pensamento marxiano, Katz segue a interpretação de Kevin Anderson e Nestor Kohan com relação ao amadurecimento do revolucionário alemão com relação à periferia capitalista e a superação de visões equivocadas e eurocêntricas que Marx tinha no passado.

Embora a denúncia do colonialismo e uma concepção multilinear da história esteja presente desde a juventude de Marx, este supunha que a periferia repetiria a industrialização do centro, assim como o capitalismo se expandiria em escala mundial, criando um sistema interdependente que facilitaria a transição acelerada ao socialismo. Ele acreditava que a expropriação dos artesãos e dos camponeses levaria a uma expropriação posterior dos seus exploradores. A China era retratada como uma sociedade bárbara, a Índia descrita como um país estagnado pela predominância de comunidades rurais, a América Latina quase não despertava maiores interesses dos fundadores do marxismo.

Foi a “descoberta” da lei do valor, o caráter desigual do desenvolvimento capitalista (a questão da classicidade) e o estudo mais sintomático de países periféricos e coloniais como a própria Índia, Irlanda, Rússia, México e outros que possibilitou uma perspectiva mais apurada de Marx com relação ao desenvolvimento capitalista na periferia. Katz, citando Nestor Kohan, afirma que a revisão sobre a questão nacional-colonial por parte de Marx precipitou uma virada para a construção de uma perspectiva multilinear que ressaltava o papel transformador dos sujeitos na história.

Segundo Katz, a retomada de Marx é importante porque seu pensamento lançou as bases para explicar como o capitalismo gera o subdesenvolvimento. Apesar de não ter formulado uma teoria do colonialismo nem exposto uma tese da relação centro-periferia, as observações de Marx sobre o impacto positivo das lutas nacionais na consciência dos operários do centro forneceram bases para o anti-imperialismo contemporâneo. Apesar de Katz enfatizar essa virada metodológica e o amadurecimento político de Marx, vale também destacar a importância do desenvolvimento de sua crítica da economia política: isto é, a descoberta da lei do valor e a análise da concorrência intercapitalista como elementos dorsais para identificarmos a tendência ao desenvolvimento desigual do capitalismo.

É justamente essas questões vinculadas ao campo da crítica da economia política que o autor argentino melhor enfatiza ao analisar as contribuições de outros três clássicos do marxismo: Lênin, Rosa Luxemburgo e Trótski. Katz incorpora elementos e categorias sobre o imperialismo e a dependência advindos desses três teóricos revolucionários. De Lênin, o economista argentino reivindica a noção de desenvolvimento desigual e a riqueza de suas análises sobre as vias não clássicas de desenvolvimento do capitalismo. A obstrução à industrialização da periferia, para o autor russo, seria uma asfixia econômica por fatores endógenos e exógenos das formações sociais periféricas. Sobre a questão do imperialismo leninista, Katz pondera uma leitura não dogmática, em especial sobre o apontamento de “última etapa capitalista”. Já de Rosa Luxemburgo, o autor argentino enfatiza o pioneirismo da teórica polonesa em interpretar a relação centro-periferia como uma necessidade do capitalismo mundial em expansão.

Para Katz, o germe da proposição de “desenvolvimento do subdesenvolvimento” estaria nos estudos de Luxemburgo sobre a acumulação capitalista e o moderno imperialismo. A dificuldade de realização dos capitais somente através dos mercados internos dos países imperialistas impunha a necessidade de se extrair lucros das colônias e semicolônias, através do controle de tais mercados, da pilhagem colonial ou de maiores taxas de exploração do trabalho nessas regiões. Apesar de não concordar com o diagnóstico subconsumista de Luxemburgo, Katz valoriza suas contribuições, em especial a noção de acumulação por espoliação ou desposseação tão reivindicada por diversos economistas e geógrafos contemporâneos, como David Harvey.

Já de Trótski, o economista argentino incorpora a noção de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. Segundo o autor, Trótski não só registrou as assimetrias, mas também as misturas de formas avançadas e atrasadas nas formações incorporadas ao mercado mundial. Ou seja, ao acrescer o princípio da combinação ao desenvolvimento desigual, Trótski ilustrou bem a diversidade de ritmos de desenvolvimento e a mistura entre o arcaico e moderno.

Num raro esforço contemporâneo, Katz também revisita os debates socioeconômicos sobre o capitalismo e imperialismo no pós-Segunda Guerra. Nesse sentido, o economista argentino tentou fazer uma síntese dialógica entre três grandes “escolas” de interpretação do fenômeno do imperialismo contemporâneo.

A primeira seria a do grupo da Monthly Review; liderado por Paul Baran, Paul Sweezy e Harry Magdoff, a tradicional revista marxista estadunidense tem o capitalismo monopolista e o imperialismo contemporâneo como uns dos principais objetos de estudo. Desdobrando o argumento de Lênin de que o capitalismo monopolista desenvolvera uma nova tendência, a da estagnação, a “Escola da Monthly Review” localiza o imperialismo como uma espécie de contratendência à estagnação ao lado dos gastos improdutivos, consumo de luxo, militares, etc. Baran e Sweezy enfatizam a teoria do “dreno imperialista”, ou seja, como grande parte do excedente econômico das periferias é transferido para os países imperialistas. Magdoff materializa esse argumento através dos seus estudos empíricos sobre a política externa norte-americana e os seus novos mecanismos de extração de excedentes.

A segunda escola revisitada por Katz é vinculada ao pensador egípcio Samir Amin. Amin, infelizmente, é pouco conhecido e difundido no Brasil, mas possui uma expressiva e extensa obra econômica, política e filosófica. Foi um dos mais notáveis marxistas terceiro-mundistas, atento analista das transformações econômicas, sociais e geopolíticas do capitalismo e imperialismo. Nesse sentido, Katz reivindica, em especial, dois argumentos-síntese de Amin. O primeiro é de que, principalmente após a década de 1970, o sistema imperialista teria adaptado as rivalidades econômicas a uma gestão política-militar compartilhada pelas grandes potências: o imperialismo coletivo.

Com essa tese, à época, Amin se diferenciava à tese das sucessões hegemônicas que postulavam a necessária substituição da supremacia estadunidense por outra potência dominante. O outro argumento central de Amin, destacado por Katz, é a atualização da lei do valor de Marx, isto é, a sua “mundialização”. O famigerado processo de “globalização produtiva e financeira” rompeu com os limites nacionais da lei do valor. A base econômica do imperialismo contemporâneo, para Amin, seria a vigência de diferentes taxas no grau de exploração da força de trabalho e a expropriação de riquezas naturais e sociais da periferia.

O último autor revistado foi o economista franco-belga Ernest Mandel. Para Katz, a interpretação mandeliana sobre o “capitalismo tardio” também trouxe importantes contribuições para a reflexão da relação centro-periferia. Ao contrário de Baran e Sweezy onde a teoria do dreno enfatiza mais os elementos exógenos da dominação imperialista, em Mandel o desenvolvimento desigual e combinado se atualizou. Para o economista franco-belga, o pós-Guerra foi marcado por um período contraditório de obstrução do desenvolvimento na periferia. Se, por um lado, um grupo de países periféricos perpetuou a primarização agromineira para atender à nova demanda de insumo, por outro, alguns países periféricos alcançaram algum desenvolvimento industrial com o processo de substituição de importações.

Sendo assim, ampliar-se-ia a transferência de mais valia e lucros para os países imperialistas através de diversos mecanismos endógenos e exógenos à acumulação capitalista nos países dependentes ou periféricos. Para Mandel, para além da deterioração dos termos de troca, a dependência se expressa também nos diferentes graus de exploração e produtividade do trabalho, inclusive, em regiões periféricas no interior dos países imperialistas, algo que Mandel chamou de “colônias internas”.

A segunda parte do livro é destinada a apresentar, em linhas gerais, as formulações da teoria marxista da dependência, seus críticos, diferenças e proximidades com a teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein e um breve balanço crítico da obra do alemão André Gunder Frank. Katz dá um destaque especial às proposições de Ruy Mauro Marini com relação a uma legalidade específica do capitalismo dependente latino-americano.

Marini conceitua o capitalismo dependente a partir de suas observações sobre o ciclo de financiamento, produção e comercialização dessas economias em comparação com os países centrais e o menor investimento privado nas ex colônias. Constatou também que o capital estrangeiro drenava recursos por meio de royalties, excedentes ou compra de maquinaria. No entanto, o cerne para compreender a extração dos lucros extraordinários dos grandes monopólios estaria na superexploração do trabalho, em especial por conta da população excedente de trabalhadores em diversas regiões latino americanas.

De certa forma, Marini propõe desdobramentos da lei do valor de Marx a partir das especificidades latino-americanas. Superexploração do trabalho e subimperialismo, devido às atrofias do mercado interno e o “desenvolvimento do capitalismo dependente”, fazem parte de um arsenal de categorias desenvolvido não só por Marini, mas também por Vania Bambirra, Theotônio dos Santos e outros intelectuais. No entanto, talvez o ponto alto dessa segunda parte seja a tentativa de síntese e aproximação entre dois autores marxistas latino-americanos divergentes: Agustín Cueva e Marini.

Cueva, entre os anos 1960 e 1980, foi um dos grandes críticos da teoria marxista da dependência, em especial sua versão preliminar cristalizada em André Gunder Frank. Para Cueva, numa leitura mais próxima à tradição dos partidos comunistas, embora existissem particularidades históricas no capitalismo latino-americano, não existiria uma legalidade própria desse capitalismo. O equatoriano contestou teórica e empiricamente as noções de superexploração, como pauperismo absoluto dos trabalhadores, e subimperialismo a partir de análises empíricas da economia argentina e brasileira, por exemplo. Suas proposições ficaram conhecidas como marxismo endogenista.

Contudo, em especial, na fase de redemocratização dos sistemas políticos latino-americanos, crise da dívida externa e ascensão neoliberal, Katz destaca uma maior proximidade nas posições entre Marini e Agustín Cueva. Apesar de manterem diferenças importantes, para Katz, o encontro entre Marini e Cueva fornece importantes sínteses para desvendarmos a dependência latinoamericana, sem dúvida um caminho não sectário e dialógico fundamental para o marxismo latinoamericano neste século: “No plano econômico, a região é subdesenvolvida em comparação com os países avançados. Na divisão internacional do trabalho, a América Latina ocupa um lugar periférico, em oposição à inserção privilegiada das potências centrais. No aspecto político, sofre dependência, ou seja, margens estreitas de autonomia e contrapostas ao papel dominante exercido pelo império”. [KATZ, 2020, p. 137]

A terceira e última parte do livro reúne artigos de Katz sobre a sua proposição de atualização da dependência no século XXI – por isso, também, é a parte mais polêmica e instigante de sua obra. Esses artigos animaram o debate marxista dentro e fora na América Latina. Sumariamente, Katz concorda que a problemática das “duas crises” da periferia industrializada investigadas por Marini intensificar-se-ia nesse século, isto é, por um lado haveria uma sangria de divisas provocada pelo pagamento de juros, patentes e royalties aos grandes monopólios internacionais e, por outro, haveria uma crise de realização devido à atrofia dos mercados internos. Outro legado oriundo dos fundadores da TMD que Katz reivindica é a atualidade das transferências de valor e mais-valor por meio das cadeias globais produtivas lideradas por grandes corporações sediadas em países imperialistas.

No entanto, o economista argentino questiona a validade da categoria de superexploração como base socioeconômica da dependência e do imperialismo contemporâneo. Para ele a internacionalização da lei do valor devido ao processo de “globalização” notabilizou-se por uma hierarquização dos preços do valor da força de trabalho a partir de elementos históricos, como a correlação de forças na luta de classes, e estruturais, como a inserção de cada país nas cadeias de valor globais. Segundo Katz, a dependência não se baseia na violação, mas no cumprimento da lei do valor. Esse critério seria decisivo na caracterização da força de trabalho e, também, forneceria um guia para resolver velhos enigmas da teoria marxista, como a transformação de valores em preços (KATZ, 2020, p. 280).

Sobre o “subimperialismo”, Katz afirma que as bases econômicas desse fenômeno descritas por Marini, em especial as restrições de mercado interno, não se sustentam. Além disso, entre os “países intermediários” também há importantes diferenças: o ponto central para o intelectual argentino seria o papel de cada país nas cadeias globais de valor e o respectivo poder militar. Além disso, o autor também aponta importantes diferenças no ciclo da dependência contemporânea e o redesenho da divisão internacional do trabalho após a emergência do neoliberalismo.

O predomínio extrativista na América Latina, a desindustrialização de países como Brasil e Argentina, o crescimento industrial asiático e os novos mecanismos de dominância financeira e tecnológica dos países imperialistas, em especial os EUA, são algumas transformações apontadas. Para ele, a teoria marxista da dependência clássica não daria conta de interpretar, por si só, esses novos fenômenos, embora o autor não ofereça grandes alternativas, por exemplo, numa interpretação ainda vaga sobre o desenvolvimento chinês. O economista argentino chega a reivindicar a contemporaneidade de uma renda imperialista, isto é, a apropriação de riquezas naturais e sociais por parte de grandes empresas imperialistas protegidas por seus Estados.

Por fim, diante das proposições de Katz, cabe salientar o debate de alto nível entre marxistas. Referências da teoria marxista da dependência como Jamie Osório (2018), Adrián Sotelo Valencia (2018) e Carlos Eduardo Martins (2018) produziram interessantes respostas defendendo a atualidade da categoria de superexploração para definir a particularidade da dependência latinoamericana. Osório e Valencia, em especial, sugerem que a superexploração seria uma terceira forma de exploração dentro da teoria do valor expandida no mercado mundial. Martins analisa as transformações contemporâneas do capitalismo e uma possível renovação da TMD sem abrir mão das principais categorias dos seus fundadores.

Esse é um debate que, inclusive, tem transcendido as fronteiras latino-americanas. Pesquisadores ingleses do imperialismo contemporâneo, como John Smith (2015) e Andy Higginbottom (2009), a partir de investigações das cadeias de valor globais, sustentam que a superexploração é a base econômico-social do imperialismo no século XXI. Inclusive, caminham para uma definição dessa categoria tendo como ponto de partida o cálculo das diferentes taxas de exploração nas cadeias produtivas. O Instituto Tricontinental, recentemente, apresentou um estudo interessante com relação às taxas de exploração nos países periféricos a partir da cadeia de produção do iPhone. Portanto, mais que uma definição vinculada ao pauperismo, a superexploração, no capitalismo contemporâneo, seria algo mais “relativo” diante das diferentes condições sociais, econômicas e culturais das classes trabalhadoras.

Nesse sentido, sem dúvida, a obra de Cláudio Katz merece ser lida por todos os intelectuais e militantes comprometidos com transformações estruturais nas sociedades. O esforço de atualização das teorias da dependência e do imperialismo também é um esforço de revigorar o pensamento marxista como a teoria revolucionária para o século XXI.

Referências

Cláudio Katz. A Teoria da Dependência: 50 anos depois. Tradução: Maria Almeida. São Paulo, Expressão Popular, 2020.

Luís Eduardo Fernandes é professor de História, doutorando no programa de pós graduação em Serviço Social da UFRJ e membro do comitê central do PCB.

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