A Saída da Ford do Brasil e o Imposto sobre Grandes Fortunas

Há um nexo causal entre o contínuo processo de desindustrialização brasileiro, a concessão de incentivos fiscais à indústria automotiva e o sistema tributário perverso vigente no país, que estimula pobreza.

Márcio Calvet Neves

Fonte: GGN
Data original da publicação: 16/01/2021

No final de 2020 o governo da Argentina aprovou a criação de um imposto extraordinário sobre grandes fortunas (IGF), que incidirá sobre patrimônios superiores ao equivalente a R$ 12 milhões. A estimativa é que o tributo seja pago por apenas 12 mil argentinos.

No dia 11 de janeiro de 2021, a Ford, após 100 anos produzindo veículos no Brasil, anunciou a decisão de encerrar as operações de manufatura no país. Durante 2021 as plantas de Camaçari (BA), Taubaté (SP) e Troller (Horizonte – CE) serão fechadas e milhares de empregados diretos e indiretos, e suas famílias, perderão sua principal fonte de renda.

Qual seria a ligação entre esses dois fatos, que, aparentemente, não possuem qualquer relação? É o que este artigo pretende demonstrar. Há um nexo causal entre o contínuo processo de desindustrialização brasileiro, a concessão de incentivos fiscais à indústria automotiva e o sistema tributário perverso vigente no país, que estimula pobreza, multiplica a riqueza de poucos indivíduos e aumenta o suposto Custo Brasil para as empresas.

A Relação entre Desindustrialização e Incentivos Fiscais

Até 1990 o Brasil era guiado por uma política de industrialização por substituição das importações. Políticas protecionistas tinham o objetivo de estimular o mercado interno e o crescimento do parque industrial local. Com a eleição de Fernando Collor, em meio à onda de liberalização, tudo mudou rapidamente. Collor aderiu rigorosamente aos princípios do Consenso de Washington, que incluíam o livre comércio e a redução de tarifas como políticas para o rápido desenvolvimento econômico. Como resultado, em 1990, o país implementou drásticas reduções tarifárias unilaterais. Dix-Carneiro e Kovak (2017) analisaram os 25 anos subsequentes à abertura do mercado brasileiro e concluíram que as reduções tarifárias diminuíram a quantidade de empregos e os salários do setor formal. Segundo o estudo, isolando fatores externos como o boom das comodities e a variação cambial, houve claramente o chamado “race to the bottom” no setor industrial, afetando várias regiões onde estavam instaladas.

A abertura comercial sem critérios e feita de forma acelerada é considerada uma das principais razões para o declínio da industrialização no Brasil. Em 1990, as atividades industriais correspondiam a aproximadamente 20% do PIB. Em 2018, o percentual já havia caído para 11% (Bresser-Pereira, 2019).

Outras políticas governamentais, como privatizações de setores estratégicos, desregulamentação e financeirização da economia, também causaram desindustrialização. Progressivamente, o País foi focando cada vez mais no que tinha em abundância: exploração de recursos naturais e agricultura. O problema é que tais atividades geram pouco emprego, são mal remuneradas e ambientalmente destrutivas. Ou seja, o processo iniciado em 1990 gerou uma dependência de longo prazo do qual o país não conseguiu escapar. De acordo com estatísticas oficiais, os sete principais produtos exportados em 2019 foram: soja, óleo, minério de ferro, celulose, milho, carne e frango (Fazcomex, 2019). A produção de soja aumentou de 26 milhões para 260 milhões de toneladas em um período de dez anos e, junto com a limpeza da pastagem, é hoje uma das principais razões para a degradação ambiental na Amazônia e no Cerrado (FSE, 2020).

Após o governo de Collor, já com a desindustrialização em marcha, o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) estimulou abertamente uma guerra fiscal entre os estados para atrair atividades industriais e reverter o quadro. FHC foi crucial para a instalação de indústrias automotivas nos estados governados por seus aliados, tais como o Rio de Janeiro de seu correligionário Marcello Alencar. O sul fluminense havia sido severamente afetado pelas privatizações de empresas como a CSN (Volta Redonda) e a Light (Piraí). A solução vislumbrada foi a atração de indústrias como a Volkswagen e a Peugeot-Citroen, num processo que beneficiou particularmente empresários e políticos locais, donos das terras onde as empresas se instalaram (Pereira, 2008).

No caso da Ford, o então governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, se opôs à concessão de incentivos, fazendo com que a nova planta da empresa fosse construída na Bahia, terra de Antônio Carlos Magalhães, aliado de FHC. Olívio e sua equipe, muito criticados à época, entendiam que não seriam os incentivos fiscais que segurariam o investimento de empresas no País, uma vez que num mundo globalizado de capitalismo predatório empresas poderiam ir e vir ao seu bel prazer.

Os dados do Rio de Janeiro mostram que Olívio Dutra estava certo. O crescimento da economia fluminense entre 1992 e 2011 é creditado quase que exclusivamente à indústria extrativa, de petróleo e gás, e não à indústria automotiva (Campelo, Lima e Notini, 2012; Silva Neto, 2006). Em relação aos incentivos concedidos à indústria automotiva, o ex-prefeito de Resende, Eduardo Mehoas (1997-2004) afirmou o seguinte: “são 15 anos de isenção de impostos municipais, mais 75% do ICMS devido ao estado, além de R$ 15 milhões de investimentos diretos do governo do estado. Para quê? Apenas três mil empregos diretos, sendo que a maioria das empresas consorciadas não tem sequer sede no município. Isso acabou gerando a atração de aproximadamente trinta mil pessoas para a cidade, ampliando o número de desempregados na região” (Oliveira, 2008, p. 245).

A análise histórica é importante para contextualizar a decisão da Ford, que faz parte de um longo processo de desindustrialização, que não pôde ser freado por medidas temporárias e danosas para a sociedade, como a concessão de incentivos tributários.

Ora, se tributos são usualmente citados como uma das razões para empresas saírem do Brasil e sua redução temporária não é suficiente para garantir a perpetuação de investimentos e empregos, qual então seria a solução?

Custo Brasil: a Relação entre a Decisão da FORD e o IGF

O suposto Custo Brasil, alardeado como eterno vilão que impossibilitaria a captação de investimentos produtivos e geração de empregos, tem vários componentes. Os mais citados seriam os custos trabalhistas e, principalmente, os tributários. Sob o argumento de reduzir tais custos, reformas foram aprovadas (trabalhista e previdenciária) ou estão prestes a ser aprovadas (a tributária). No entanto, as reformas citadas tiveram e terão nenhum impacto na redução do Custo Brasil.

A Ford estava há 100 anos no Brasil, viu nascer os direitos trabalhistas com a CLT e conviveu com tais direitos e sindicatos até 2017, quando foi aprovada a reforma trabalhista, apenas poucos anos após o País ter atingido o pleno emprego sem revogação de direitos dos trabalhadores. Se a Ford reduziu ou não a sua folha salarial em decorrência da reforma trabalhista é irrelevante, pois a reforma precarizou as relações de emprego em todo o País e criou uma legião de subempregados, sem renda e garantia para, por exemplo, comprar veículos, diminuindo seu mercado consumidor interno.

Em relação à questão tributária, o caminho escolhido pelo Brasil é ainda mais preocupante. Há unanimidade de que a carga tributária sobre bens produzidos no Brasil é alta e complexa. Cada venda de veículo pela Ford no mercado interno é sujeita ao pagamento ICMS, IPI, PIS e COFINS, tributos que incidem em cascata e encarecem o produto. Só que, a redução do Custo Brasil depende de medidas que enfrentem o sistema tributário altamente regressivo, em que as classes mais altas pagam muito pouco tributo e os mais pobres destinam seus escassos rendimentos ao pagamento de impostos embutidos nos preços das mercadorias e serviços que consomem, fazendo com que sejam excluídos do mercado de consumo de bens duráveis, como veículos.

Após a decisão da Ford, notícias compararam o preço do veículo produzido nos Estados Unidos com aquele vendido no Brasil e justificaram a diferença na carga tributária. Convenientemente, só esqueceram de mostrar ao consumidor que pagamos mais pelo automóvel porque não tributamos nossa elite.

A complexa tributação incidente sobre bens e serviços produzidos pelas empresas apenas é necessária porque a elite brasileira não admite ser tributada como seus pares estrangeiros. Qualquer proposta que busque maior justiça tributária, seja ela a criação do IGF, a tributação de dividendos, o aumento da progressividade no imposto de renda, o aumento da base e das alíquotas da tributação sobre herança, a tributação de aeronaves e iates, o aumento do IPTU e o fim de privilégios concedidos a determinados profissionais de elite, como o ISS uniprofissional, é logo contestada por um batalhão sócios de escritórios/ professores de Direito Tributário. Usam e abusam do Direito para justificar, por exemplo, que um advogado que receba exatamente a mesma quantia que um faxineiro pague muito menos tributos sobre o mesmo rendimento. Seguindo à risca a estratégia do grande jurista e juiz da Suprema Corte americana, Lewis Powell, conquistaram concomitantemente a academia e os principais cargos jurídico/empresariais para perpetuar uma ideologia de dominância da elite (Powell, 1971). Reproduzem no Brasil, na área jurídica, o casamento que ocorreu nos Estados Unidos na área financeira e ajudou a gerar a crise mundial do subprime em 2008 (vejam o documentário vencedor do Oscar Inside Job, disponível na Netflix).

A grande questão é que passa despercebido que juristas que prestam ao mesmo tempo consultoria tributária para empresas e para indivíduos/famílias, causam um nó estrutural. Ao sempre contestarem a tributação sobre indivíduos, impedem a redução dos tributos sobre produtos e a atividade empresarial. Fornecem subsídios jurídicos para opiniões como a exarada recentemente pelo Ministro da Fazenda, Paulo Guedes, que se posicionou contrariamente ao IGF alegando que o tributo poderia gerar fuga de capitais, perda de novos investimentos e, consequentemente, mais desemprego. O Ministro simplesmente reproduziu a batida tática de usar infundadas greves de investimento para evitar mudanças tributárias que cobrem tributos da elite (Charles Lindblom, 1977;  Bell e Hindmoor, 2014), mas no Brasil há sempre um argumento legal para acompanhar a perpetuação da injustiça tributária.

Não é que a elite não seja ciente das suas regalias tributárias. Conhece seus privilégios, mas atribui apenas ao Estado a responsabilidade pela diminuição da desigualdade e não admite que a solução venha por meio de alterações na carga tributária (Scalon, 2007, pp.  146, 147). É um problema sociológico brasileiro que serviu de alicerce para construir a narrativa de economistas e juristas de que bastará a simplificação e unificação de tributos para melhorar o ambiente de negócios no Brasil, uma clara falácia, simplesmente porque a conta não fecha.

Existem propostas que de fato reduziriam o Custo Brasil e modernizariam o sistema, como aquelas constantes na campanha “Tributar os Super-ricos para Reconstruir o País”. Entre elas, a proposta para a criação do IGF para indivíduos com patrimônio acima de R$ 10 milhões. A estimativa de arrecadação é de R$ 40 bilhões por ano e o novo imposto atingiria apenas 59 mil pessoas, ou seja, 0.028% da população. Como na Argentina, seria um imposto cobrado apenas dos realmente ricos, o que difere do modelo praticado na Europa, de base mais universal. Assim, no Brasil e na Argentina, muito mais que na Europa, o IGF teria condições de atingir a sua real finalidade, que é a de reduzir desigualdades.

E aí vem a pergunta fundamental: o que o IGF e a tributação sobre a renda e patrimônio têm a ver com reduzir o Custo Brasil? Vamos à resposta: o governo sempre precisa de receita e a carga tributária brasileira, aproximadamente, 34% do PIB, é considerada adequada às necessidades do País. Se o governo não pode cobrar dos indivíduos, cobra das empresas, num ciclo perverso de perpetuação estrutural do Custo Brasil.

É emblemático que a Ford tenha escolhido sair do Brasil e investir US$ 580 milhões na Argentina, onde manterá sua atividade industrial. Nossos vizinhos são governados por Alberto Fernandes, que implementa inúmeras medidas amplamente criticadas pela elite brasileira, como a proibição de demissão durante a pandemia e a criação do IGF.

Na escolha entre um país que abertamente prioriza sua elite (usando um fictício Custo Brasil como desculpa) e outro que, atualmente, tem maior visão de longo prazo, escolheu o último. Ainda que os desafios na Argentina atual sejam enormes, a perspectiva de melhora do cenário econômico pareceu à Ford melhor. A elite brasileira, ao contrário da argentina, raramente perde suas batalhas. É abertamente predatória, progressivamente antidemocrática – e vencedora. Políticas de longo prazo que patrocina, como o chamado teto de gastos, impedirão investimentos em infraestrutura, segurança, educação, saúde, proteção das fronteiras, entre outras funções essenciais para o desempenho empresarial. A reforma tributária que defende não reduz em nada seus privilégios. Nos últimos anos apoiou sem ruborizar um projeto obscurantista de governo que ameaça a democracia brasileira constantemente. A Ford certamente levou tal cenário de longo prazo em consideração.

Os defensores das reformas estruturais recentemente implementadas alegam que a decisão da montadora faz parte do mercado globalizado. Ignoram o básico: a competição do Brasil não era com todos os países do mundo. Era apenas com a Argentina e o Uruguai. Mesmo com um mercado interno muito superior, perdemos. É a tal coisa: quando o leão está solto, não é preciso correr mais rápido que o animal para se salvar – basta correr mais rápido que seu vizinho. É claro que fatores como a queda de demanda e a concorrência dos veículos asiáticos e europeus tiveram peso na decisão, mas no fundo isso não importa. Bastava ao Brasil dispor de condições melhores que a Argentina e o Uruguai, nossos companheiros do Mercosul. Nem isso as políticas patrocinadas por uma elite cada vez mais predatória consegue mais. A Ford não foi a primeira, nem será a última a tomar tal decisão. Seguiu a Mercedes Benz e outras mais virão enquanto não mudarmos a mentalidade dos que hoje comandam as empresas, escritórios e a política nacional e determinam o rumo do país.

Referências

Bell, S., Hindmoor, A.  The Structural Power of Business and the Power of Ideas: The Strange Case of the Australian Mining Tax. New Polit. Econ. 19, 470–486, 2014. https://doi.org/10.1080/13563467.2013.796452

Bresser-Perreira, L. (2019). Quarenta anos de desindustrialização. A terra é redonda. https://aterraeredonda.com.br/quarenta-anos-de-desindustrializacao/

Dix-Carneiro, R., & Kovak, B. K. (2017). Trade Liberalization and Regional Dynamics. The American Economic Review, 107(10), 2908–2946. JSTOR.

Campelo, Armando Jr., LIMA, Sarah Piassi Machado, NOTINI, Hilton Hostálicio. Características dos Ciclos Econômicos do estado do Rio de Janeiro. In: Rio de Janeiro – um Estado em Transição / organizadores PINHEIRO, Armando Castelar, VELOSO, Fernando. Rio de Janeiro: Editora FGV, pp. 63-86, 2012.

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Pereira, Lia, As Exportações Fluminenses: a Maldição dos Recursos Naturais? In: Rio de Janeiro – um Estado em Transição / organizadores PINHEIRO, Armando Castelar, VELOSO, Fernando. Rio de Janeiro: Editora FGV, pp. 149- 178, 2012.

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Resende, Thiago; Caram, Bernardo (2021). Imposto sobre fortunas vai a debate na Câmara, mas é rejeitado por Guedes. Folha de São Paulo, 10 de janeiro de 2021. https://www1-folha-uol-com-br.cdn.ampproject.org/c/s/www1.folha.uol.com.br/amp/mercado/2021/01/imposto-sobre-fortunas-vai-a-debate-na-camara-mas-e-rejeitado-por-guedes.shtml

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Scalon, Celi. Justiça como igualdade? A percepção da elite e do povo brasileiro. Sociologias. DOI: 10.1590/S1517-45222007000200007. Dezembro de 2007.

Márcio Calvet Neves é membro do Conselho Deliberativo do Instituto Justiça Fiscal, advogado tributarista e mestre em ciência política e políticas públicas.

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