A Reforma Administrativa Como Instrumento Ideológico

Fotografia: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Fazendo a classe dominada acreditar que obterá maior eficiência para os serviços públicos, na verdade, a classe dominante apenas investe na alienação da população e mantém a relação de exploração dificultando, agora inclusive, que qualquer pessoa da classe explorada ascenda socialmente por meio de um cargo público.

Alyson Sanches Paulini

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 22/09/2020

Poucos dias antes do feriado de 07 de setembro do ano de 2020, o Presidente da República Jair M. Bolsonaro apresentou a Proposta de Emenda à Constituição de número 32 que, dentre outras intenções, pretende alterar as regras do regime estatutário dos servidores públicos, especialmente no que toca a estabilidade desses trabalhadores e, ao mesmo tempo, intenta incrementar os poderes do próprio Presidente da República.

A proposta foi acompanhada pelo típico discurso dos liberais na economia e conservadores nos costumes que, além de encerrarem a típica contradição dessa postura política – tema tratado neste artigo -, também fundamentaram sua pretensão em discurso meritocrático.

Para os proponentes da Reforma Administrativa o esvaziamento da garantia à estabilidade do servidor público pode servir para que aquele trabalhador trabalhe mais e melhor, afinal agora contariam com o fantasma da demissão e, nesta lógica, “nada melhor que o medo” para garantir a eficiência do serviço público.

A PEC da Reforma Administrativa apresenta algumas contradições severas tais como a intenção propositada de confundir o regime público com o privado, ou, a potencialidade de se transformar os servidores em agentes do governo, ou a irreal afirmação de que a Reforma só recai sobre novos servidores, ou, até mesmo a pretensão de conceder ao Presidente da República poderes que só foram concedidas por constituições brasileiras claramente autoritárias.

As inúmeras contradições presentes na proposta de Reforma Administrativa podem e são objeto de críticas pelos mais diversos setores da sociedade no entanto, para o presente texto, o que se pretende é observar a motivação apresentada pelos proponentes para então compreender a própria Reforma Administrativa como um instrumento ideológico.

Ideologia, segundo o dicionário Houaiss, é: “1. ciência das ideias. 2. conjunto de ideias, crenças, tradições, princípios e mitos, sustentados por um indivíduo ou grupo social de uma época, de uma sociedade.”.

Apesar desse conceito guardar correspondência com compreensão da origem da expressão, com o tempo, ideologia passou a ter outros significados e, dentre esses “outros significados”, Karl Marx traz importante contribuição crítica.

Marx observou uma divisão entre o trabalho manual e o intelectual, sendo que este seria executado pelos grupos dominantes que se apropriariam das ideologias para a manutenção daquela divisão do trabalho.

Nesse contexto, a classe dominante produz ideologia para que a divisão do trabalho e da sociedade em classes sociais não seja objeto de questionamento. Assim, a Professora Juliana Bezerra¹ afirma: “Deste modo, a ideologia impede que a sociedade perceba o vínculo interno entre o poder econômico e o poder político”.

Dessa forma, a ideologia assume o papel de manter a exploração de uma classe sobre outra, valendo-se de formas discursivas que transformam o interesse da classe dominante em interesse da coletividade.

Firmada essa premissa, voltemos aos fundamentos não jurídicos utilizados para a proposta de Reforma Administrativa. Como dito acima, a ideia da reforma, no que toca os servidores públicos, é adotar um “política mais forte de meritocracia”, com objetivo de garantir maior eficiência.

A meritocracia enquanto falácia dos tempos modernos, por si só, poderia ser objeto de longo debate, no entanto, o caminho que o presente texto pretende trilhar é diverso.

Primeiramente, destaca-se que o atual estatuto dos servidores públicos já conta com adequados instrumentos de controle de eficiência do servidor, no entanto, a campanha produzida pelos órgãos da presidência parecem olvidar tal fato.

Ademais, também é de se questionar o que se compreende como eficiência no serviço público, por exemplo, qual seria a métrica para a eficiência de um professor de escola infantil.

A preocupação ainda ganha mais força quando a referida proposta de Reforma Administrativa parte de um governo que elabora dossiês sobre pessoas que se declaram antifascistas que, em linhas gerias, deveria incluir qualquer pessoa que respeita a ordem democrática do jogo político.

Ao fim e ao cabo, aparentemente, a PEC da Reforma Administrativa apresentada em 2020 serve como um instrumento ideológico no sentido marxista do termo. Isso porque, para além de servir como uma forma de captura do setor público pelos ideais do setor privado, também parece narrar uma irrealidade para conformar a sociedade, insistindo nos discursos de ineficiência estatal, pretende transformar aquilo que é público em mais um instrumento a serviço das classes dominantes.

Fazendo a classe dominada acreditar que obterá maior eficiência para os serviços públicos, na verdade, a classe dominante apenas investe na alienação da população e mantém a relação de exploração dificultando, agora inclusive, que qualquer pessoa da classe explorada ascenda socialmente por meio de um cargo público.

Alyson Sanches Paulini é advogado formado em 2014, especialista em Direito Administrativo (2017) e Direito Constitucional (2020).

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