A quebra do modelo social europeu

A força normativa suprapolítica dos mercados financeiros evidencia uma situação de tutela do capital financeiro sobre a democracia dos Estados-nação.

Antonio Baylos

Fonte: Insight
Data original da publicação: dezembro de 2010

O modelo social europeu, embora se trate de uma construção ideológica e política, é uma realidade caracterizada em linhas gerais pela existência de sociedades que souberam adotar um Estado Social ativo, no qual a representação sindical do trabalho globalmente considerado era o eixo da regulação das condições de trabalho e vida da maior parte das classes trabalhadoras, e onde era reconhecida a cidadania social. Isto é, a cidadania encarnada em uma precisa situação de subordinação econômica, social e cultural, como o centro das políticas públicas e da ação coletiva em um processo tendencialmente dirigido para a consecução de espaços mais amplos de nivelamento social.

Junto a isto, e como elemento de convergência política com a razão de ser da União Europeia (UE), era reconhecida igualmente a dimensão social da integração econômica e monetária da Europa. Isso implicava não somente na atuação dos órgãos e governos da UE em matéria de política social e de harmonização das legislações nacionais em aspectos importantes da regulação das relações laborais e da seguridade social, como também no esforço de identificação e de definição de interlocutores em torno ao diálogo social, no reconhecimento da negociação coletiva comunitária e, ainda, em um amplo movimento compensatório das desigualdades regionais no processo de desenvolvimento econômico e social das nações europeias para efetivar um princípio de coesão social.

Esse duplo cenário – modelo social europeu que integra “as tradições dos países membros” e dimensão social da integração econômica e monetária da Europa – sofreu uma importante reorientação a partir da ampliação da EU em direção ao Leste e da consolidação da Europa dos 27, da desaceleração da integração política na Carta de Nice e na posterior renúncia em manter uma posição própria no espaço internacional, como ocorreu em relação à Guerra do Iraque. Constata-se, então, uma recomposição de posições a partir da etapa Barroso (a contar de 2004) que vai conduzir à reformulação das bases da política social e em mudanças radicais nos elementos básicos caracterizadores do modelo social europeu. É este o objetivo primeiro.

O Livro verde para a modernização do Direito do Trabalho europeu, de novembro de 2006, vai definir novos parâmetros dentro dos quais deve mover-se o Direito Laboral harmonizado sobre a base da “flexiseguridade”, noção de conteúdo variável que, uma vez contida na de flexiseguridade, será adotada como uma linha de mudança no Comunicado da Comissão de 2007. A isto se agregam a paralisação das medidas de política social e a renúncia em avançar na harmonização de direitos sociais nos países membros da UE. Mais gravemente, a Comissão dá via livre a iniciativas muito agressivas contra o “acervo” político, cultural e social que caracteriza o chamado modelo social de cada país, como ocorreu com a liberalização de serviços da Diretiva Bolkestein e com a Diretiva sobre tempo de trabalho (ambas darão lugar a uma resposta sindical muito contundente e à manifestação contrária de praticamente a totalidade da esquerda política europeia em suas diversas manifestações). Por último, mas de maneira não menos significativa, produz-se um giro muito importante na jurisprudência do Tribunal de Justiça, que nos casos Viking e Laval restringe o exercício do direito de greve e da atividade sindical no plano supranacional e, no caso Rüffert, restringe o direito à negociação coletiva, submetendo tais direitos às grandes liberdades econômicas e ao dumping social.

Esses fatos pressagiavam um questionamento ao entrecruzamento dos modelos sociais nacionais fortes e à dimensão social da integração econômica. A verdadeira mudança de rota veio a ocorrer a partir de fevereiro de 2010, após as turbulências financeiras que causaram o endividamento dos Estados e elevaram a alturas inalcançáveis o custo do financiamento da dívida contraída para sanear o sistema financeiro que afundara em finais do ano de 2008. Os embates na chamada zona do euro e o jogo de um capitalismo de cassino com a dívida dos países periféricos da UE provocaram uma crise sem precedentes nesses Estados-nação, para os quais a adoção da moeda única não lhes serviu de garantia. Dessa maneira, a adoção de medidas claramente anti-sociais que implicam na erosão dos salários, a degradação dos direitos laborais e a redução e assistencialização dos níveis de proteção social apresentam-se como conseqüência inevitável da crise financeira e do endividamento. As políticas de cortes do gasto público – algumas delas de extrema amplitude –, as chamadas “reformas estruturantes” do mercado de trabalho acrescidas de flexibilização das relações de trabalho e de redução das garantias de emprego e, ainda, as reformas dos sistemas de pensões por idade como mecanismo para alargar a vida laboral e de fortalecer o princípio da contributividade, respondem a essa orientação.

Essa situação, no final de 2010, dista muito de estar assegurada, em que pese a insistência cansativa dos comentaristas especializados e dos políticos comprometidos para que “as águas voltem a seu leito” e outras metáforas de normalização social depois das catástrofes. Vivemos em um momento líquido onde a velocidade dos fatos, sua contínua aceleração e a capacidade de interagir não permite que se considere estabilizada a atual situação das forças em jogo. O quadro acima referido permite uma série de reflexões que podem sugerir alternativas a seguir.

Possivelmente, o primeiro aspecto a debater é algo bem conhecido e tratado nos discursos políticos e ideológicos atuais: a idoneidade das políticas econômicas que estão sendo postas em prática como fórmula para saída da crise e que conceitualmente confrontam a UE com os Estados Unidos da América. Essa contraposição entre políticas de intervenção ativa, de expansão da intervenção pública para promoção do mercado de trabalho versus políticas de restrição de gasto público para a redução do déficit (ainda que à custa de sacrificar o crescimento econômico e de impedir a renovação de um modelo de crescimento sobre parâmetros de sustentabilidade) têm uma repercussão evidente no domínio dos direitos sociais.

No caso europeu, o efeito restritivo e de degradação dos padrões de vida e de trabalho da maioria da população, decorrentes das políticas do déficit, apresenta-se imerso no discurso que indica a submissão dos direitos sociais (e da dimensão social da integração econômica) como fórmula para recuperação da economia. Isso acaba por estabelecer uma equação entre crescimento econômico e manutenção de direitos de uma parte e, de outra, entre crise da economia e derrogação de direitos laborais e sociais. E claramente esse discurso questionável, embora seja mantido pela quase totalidade dos expoentes da esquerda política atualmente exercendo o poder político nos estados periféricos da Europa, e cujo máximo expoente é o caso espanhol.

Além disso não são devidamente avaliados os efeitos dessa política econômica sobre o pensamento e a identidade da esquerda política européia contemporânea. O cenário de 2010 produziu uma fragmentação crítica do projeto de câmbio que constituía a senha de identidade da esquerda institucional. Poder-se dizer que a dissociação se acentua em função da presença dos partidos socialistas no governo ou sua situação na oposição política, mas resulta muito claro que sua crise vai mais além dessa circunstância. A aceitação acrítica da linha de ação do eixo Frankfurt-Bruxelas como forma de substituir qualquer decisão divergente sobre políticas sociais de um país, e a correlativa absorção no projeto político nacional da política econômica européia como única via possível, produz efeitos devastadores não apenas na percepção cidadã da identidade da esquerda como portadora da mudança e das idéias de reforma e de progresso, mas também na própria significação da política como anulação da participação cidadã e na consciência progressiva da inutilidade do circuito político da representação eleitoral. Exemplo disso foram últimas eleições municipais na Grécia demonstraram dramaticamente esta percepção social do desvanecimento da política como forma de afirmar a vontade da maioria da cidadania.

A isto se acresce uma tendência obstinada dos meios de comunicação, até o momento ainda não evidente (salvo em circunstâncias que se tinham como excepcionais), em manter uma opacidade muito extensa sobre as condições de existência social das populações afetadas pela crise econômica e pelas medidas adotadas para dela sair, que levam à degradação de situações jurídicas e políticas da cidadania social. No melhor dos casos, os meios de comunicação têm manifestado um total desinteresse pela dimensão social das dinâmicas econômicas e cada vez mais uma acirrada hostilidade frente às posições de resistência coletiva a essas estratégias de saída antissocial.

Como alternativa a essa crise da esquerda política e crise da própria política, produziu-se um deslocamento da defesa do modelo social europeu e da autonomia relativa da dimensão social europeia em relação às circunstâncias que rodeiam o crescimento econômico na região, para a esquerda social personificada nos sindicatos, os quais foram capazes de promover agregações transversais de outros setores sociais e culturais à sua ação de resistência às medidas antissociais e de defesa do projeto que defendem. Para essa esquerda sindical a crise apresenta-se como oportunidade para levar a cabo um projeto alternativo ao desenho institucional proposto pela “governança” europeia e que se expressa em outra política econômica e outro modelo de crescimento.

É certo, contudo, que o sindicalismo europeu encontra-se em sua situação precária, sem direção efetiva e à espera de uma liderança real e coletiva. Isto explica também, embora não a justifique, a renacionalização do conflito social nos distintos países afetados pela crise e o desinteresse relativo dos sindicatos nacionais dos estados “centrais” da UE em participar em uma resistência ativa contra as políticas econômicas da Comissão e do Banco Central. O diferente peso dos conflitos empreendidos e sua condição fundamentalmente estatal (em que pese as tentativas bem orientadas para confluir em mobilizações conjuntas, como o 29 de setembro ou a próxima jornada de 15 de dezembro) revelam a escassa força e capacidade de incidência que a esquerda social possuía com atuação isolada e dispersa em cada país.

A força normativa suprapolítica dos mercados financeiros que pretendem orientar o desenvolvimento concreto das políticas sociais nacionais evidencia uma situação de tutela do capital financeiro sobre a democracia dos Estados-nação, com a inevitável desvirtuação do projeto político indicado majoritariamente em seus respectivos processos eleitorais. E isto é feito em razão da impotência dos Estados-nação para estabelecer suas próprias condições de adaptação à crise e aos arbitrários ou espontâneos movimentos do capital especulativo que renuncia a controlar a dimensão supranacional. Essa pressão resulta diretamente no desmantelamento e desmoronamento de direitos laborais e de proteção social, na redução dos padrões da cidadania social em toda a Europa e no aumento da desigualdade social e regional entre os diferentes países membros da UE.

Apesar da crise econômica, é certo que o sindicalismo europeu vai se reforçando com uma mobilização desde a base que se consolida lentamente, afirmando sua vertente sócio-política. É importante sua mensagem de que frente à crise global que percorre o espaço-mundo o problema é encontrar uma posição que atenda aos padrões de identidade e ao modelo social que caracteriza a Europa. Definir que nesse cenário de globalização ela deve situar-se de maneira integrada, não admitindo a fragmentação culposa das economias nacionais da zona do euro. Porque ao contrário do que é afirmado desde Frankfurt e Bruxelas não há um caminho único para integrar-se aos espaços econômicos, políticos e sociais globais, e que adota a posição dos governantes europeus implica a eleição expressa e consciente de uma opção política que degrada o bem-estar dos cidadãos, faz penosas suas condições de existência e aumenta a desigualdade social e econômica.

Esta conclusão é irrefutável e mostra a correção de uma ação sindical obstinada em articular as maiorias sociais que estão interessadas em preservar um projeto político cívico-social e igualitário frente aos caprichos do capital especulativo e relacionar-se com ele de maneira soberana.

Antonio Baylos é catedrático de Direito do Trabalho na Universidad de Castilla-la Mancha. Possui um blog no endereço baylos.blogspot.com.br.

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