A proteção previdenciária ao trabalho infantil

Luiz Gustavo Capitani Reinman

Fonte: Sul 21
Data original da publicação: 25/04/2018

Do início da faculdade de Direito, ainda carrego algumas premissas que são bastante válidas: o Direito não está na mera literalidade do texto da lei, ele é extraído do conjunto das normas e dos princípios pertinentes ao caso; além disso, o Direito não é sinônimo de Justiça, mas é instrumento para alcançá-la. Enfim, a atividade dos operadores do Direito está em, dentre um extenso universo de normas e princípios (que por vezes são até conflitantes), encontrar uma coerência no sistema que leve à obtenção de uma solução justa no caso específico analisado.

Essa é a beleza do Direito e a garantia de que advogados, promotores e juízes não sejam substituídos por um programa de computador baseado em padrões objetivos de aplicação das leis. Com efeito, a interpretação da legislação permite a aplicação do Direito de forma coerente a ponto de que seja feita justiça em situações talvez não previstas pelo legislador, mas que são suficientemente reais e importantes para serem simplesmente desconsideradas.

Dentre os ramos do Direito, o Direito Previdenciário é rico em exemplos e isso se dá, em especial, por algumas características: as leis, regulamentos, instruções normativas, enfim, os textos de onde se extraem as normas são bastante numerosos e vem sofrendo constante mutação ao longo dos anos; não bastasse isso, quando falamos em aposentadoria, estamos olhando fatos ocorridos há décadas atrás e, muitas vezes, disciplinados por normas bastante diferentes das atuais.

O Direito Previdenciário, portanto, evolui no tempo sempre com um olhar solidário, inclusivo e responsável com as situações peculiares da sociedade, no passado e no presente, inclusive atento às condições precárias de trabalho e da prática no descumprimento de normas protetivas do trabalhador, como a formalização do contrato de trabalho e proibição de trabalho infantil.

Nesse contexto, importante foi a recente decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em julgamento de recurso de Apelação em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal,na qual restou reconhecido como tempo de serviço o que foi comprovadamente prestado por criança, ainda que menor de 12 (doze) anos.

Para o INSS, a partir da proibição legal de trabalho aos menores, seriam obtidas razões suficientes para inviabilizar a contagem do respectivo tempo, ainda que comprovadamente tenha havido efetiva prestação de serviço, em burla à proteção legal.

Balizada na situação concreta do país – a partir de dados estatísticos que demonstram um número assustador de crianças que trabalham com idade inferior a 12 anos – e no prejuízo causado à infância, a acertada decisão estabeleceu não ser possível que o descumprimento de uma norma protetiva – que proíbe o trabalho infantil – seja utilizado em desfavor do seu beneficiário (a criança), o que caracterizaria duplo prejuízo (a norma não foi eficaz para evitar o trabalho infantil, e ainda este trabalho não seria contabilizado para fins previdenciários).

Evidentemente que a decisão tem por norte a inclusão previdenciária daqueles que, por necessidade econômica familiar, tiveram de colaborar com o sustento em prejuízo dos estudos que oportunizariam melhores condições. Apesar disso, é certo que o caráter geral da decisão oportuniza a inclusão previdenciária de situações que não se revelam de idêntica gravidade; mas nem por isso, traduz-se em incentivo ao trabalho infantil ou prejuízo à norma de proteção.

Aos críticos, restaria o argumento do suposto déficit da Previdência Social, o que restou superado no bojo da própria decisão. Isso porque, como bem sinalizado no acórdão, o reconhecimento do vínculo previdenciário – ao menos nas situações recentes – assegura igualmente o recolhimento das respectivas contribuições para custeio do sistema, ou seja, como ocorre com todos os demais trabalhadores.

Como consequência, a remuneração da criança – e aqui destaca-se inclusive aqueles que trabalham com teatro, televisão, shows, desfiles etc – de um lado imporia a retenção da contribuição previdenciária de 8%, 9% ou 11% sobre o respectivo salário e, de outro, acarretaria no recolhimento da contribuição de 20% (e demais fatores de acréscimo) custeada pelo empregador. Seria esse um dos combustíveis da polêmica?

Ainda, por oportuno, a decisão passa longe de qualquer hipótese de “ativismo judicial”. Não adentrou esfera que não competia ao Poder Judiciário, pelo contrário, foi exercida a atividade jurisdicional, segundo a interpretação do Direito vigente, para fins de efetivação da Justiça.

Assim sendo, pode-se concluir que a recente decisão levou em conta tanto as normas e princípios que regulam o tema, como promoveu adequada interpretação com um olhar atento à realidade social brasileira, de forma coerente, propiciando a necessária evolução do Direito Previdenciário.

Luiz Gustavo Capitani Reinman é advogado.

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