A mercantilização da vida coletiva e as jornadas de junho

Adalberto Cardoso

I

As “jornadas de junho” de 2013 embaralharam substancialmente a cena política brasileira. E uso o termo em sentido próprio: elas atingiram a substância mesma de nossa sociabilidade, em múltiplas dimensões. Ainda estamos longe de compreender o alcance do que está em jogo, as vozes das ruas foram tão polifônicas quanto as tentativas de atribuir significado a elas. “Esgotamento do lulismo”, “esgotamento do padrão de incorporação dos mais pobres pelo mercado”, crise de representatividade do sistema político, expressão de um “mal-estar generalizado” contra “tudo o que está aí”, repúdio ao “governo do PT”, reação contra os “gastos excessivos para a Copa do Mundo de 2014”… Houve e ainda há interpretações para todos os gostos. Mas uma coisa é certa: vimos nascer uma grande onda de protesto, e ela ainda não deu na praia.

Há quem diga que, a essa altura, já não importa como ela surgiu, já que seus sentidos ultrapassam em muito o tema do aumento das tarifas de ônibus, que levou os jovens às ruas de São Paulo no início de junho. Isso é verdade apenas em parte. A tarifa foi um estopim, mas não um estopim qualquer. Uma simples pesquisa com o termo “ônibus incendiado” no site do jornal O Globo, que realizei no dia 9 de julho de 2013, encontrou 559 ocorrências, raramente coincidentes (quer dizer, mais de uma matéria sobre o mesmo assunto no mesmo dia), cobrindo o período de novembro de 2011 a junho de 2013. Isso dá quase uma notícia por dia sobre depredações de ônibus, em média. A grande maioria dos incêndios foi provocada por “criminosos”, “bandidos” ou “traficantes”, termos intercambiáveis na cobertura do jornal, e por vezes eles ganham estatuto de grande acontecimento.

Em novembro de 2012, por exemplo, 13 cidades de Santa Catarina sofreram ataques, com 27 ônibus incendiados por “criminosos”. Em fevereiro de 2013 as cidades “atacadas” subiriam para quase 30, os ataques sendo atribuídos a represálias de bandidos pelas torturas praticadas nos presídios daquele Estado. O governador de Santa Catariana disse ao jornal Folha de S.Paulo que os criminosos de lá estavam “imitando” os de São Paulo, que haviam generalizado a prática de queimar ônibus nas ondas de atentados que varreram o Estado em 2006, organizadas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Ele estava enganado. Não havia novidade nos ataques, nem o PCC os inaugurara.

Em 22 de julho de 2001 o jornal Folha de S.Paulo, em editorial denominado “Rebeldia primitiva”, informava que a prefeitura paulistana havia registrado 636 depredações de ônibus em 2000, quer dizer, quase dois coletivos destruídos por dia na capital, o que levou o editorialista a lamentar que “os ataques contra ônibus vão ganhando status de rotina paulistana”. E ele acrescentaria:

Essa rebeldia primitiva não se consubstancia em movimentos coesos para pressionar o Estado pela ampliação de direitos civis ou sociais, por exemplo. […] A grande massa desorganizada da população, com poucas exceções, é incapaz de acessar as instituições públicas para pressionar por seus interesses. Ela, no máximo, representa ameaça difusa, embora crescente, de insegurança para a minoria globalizada e influente.

Numa associação direta e obviamente simplista, o que está escrito é que o povo depreda ônibus porque está excluído “das instituições públicas”, e, incapaz de “movimentos coesos”, comete atos de “rebeldia primitiva”.

Um último caso dentre as milhares (repito, milhares) de ocorrências dos últimos anos: no dia 13 de fevereiro de 2013, na região do Parque da Cocaia, extremo sul da capital paulista, dois ônibus foram incendiados e outros quatro depredados num protesto dos moradores contra as enchentes na região. A aparente desconexão entre os dois eventos (protesto contra enchente que lança mão de depredação de ônibus) desaparece quando descobrimos que, na noite anterior, o córrego que corta o bairro do Grajaú havia transbordado e inundado as casas. Como os ônibus não estavam parando nos pontos, os moradores tiveram que voltar a pé para casa, em caminhadas de algumas horas. A chuva inundou casas e ruas, e os ônibus evitaram o local. Depredá-los foi uma forma de protestar contra as enchentes, o transporte público, as condições de vida na cidade.

Por que “bandidos” protestam queimando ônibus? Por que a pretensa “rebeldia primitiva” tem neles um alvo privilegiado? A infinidade de eventos de depredação, ocorrendo em várias cidades do país e pelos motivos os mais variados, não deve deixar dúvidas quanto à importância do transporte público na vida das pessoas. E nem quanto à simbologia da depredação daquilo que encarna, de forma material, cotidiana, reiterada e ostensiva, o poder público. Queimar ônibus entrou “na rotina”, como disse o editorialista citado acima. Na linguagem dos estudiosos dos movimentos sociais, tornou-se uma modalidade de protesto, parte do repertório disponível de ação coletiva, compartilhado, é bom lembrar, por ativistas do mundo todo. Uma modalidade de eficácia variável segundo as conjunturas e os países, mas que revela, de novo, a centralidade da mobilidade urbana na vida das pessoas e sua materialização no objeto alvo de constantes depredações: o ônibus, o coletivo.

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Adalberto Cardoso é sociólogo, professor do IESP-UERJ.

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