A Justiça do Trabalho e a cultura dos trabalhadores brasileiros

Não há como discutir a relação Estado-classe trabalhadora no Brasil sem compreender a mistura de discursos, ações e crenças dos operários em relação à aplicação da Justiça nas relações de trabalho.

Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 29/01/2019

De uns tempos para cá, começou a falar-se muito em “preservar” ou “resgatar” a cultura e a história. Entre historiadores, a piada interna sobre essa expressão é que “não somos bombeiros para resgatar coisa alguma”. Boas ou más piadas à parte, o chiste traz em si uma percepção da permanente transformação daquilo que chamamos cultura ou mesmo, história.

Explique-se: a cultura de um povo ou de um grupo está em permanente mudança. Valores, hábitos e saberes não param no tempo. Em relação à história, é claro que o que já aconteceu não muda mais. Em contraponto, as nossas interpretações sobre o passado estão sempre em movimento. A história de Roma Antiga ou da Idade Média que se ensina hoje não é a mesma que os alunos do século XIX ou de 1950 aprendiam. Por isso os historiadores falam tanto atualmente em permanências e mudanças.

É claro que sabemos que as coisas mudam, mas precisamos refletir sobre as (cada vez mais nos tempos atuais) permanências. Nesse sentido, uma metáfora talvez mais fácil fosse compreender a cultura e a história como um navio no qual nos lançamos ao mar. Mesmo diante das inesperadas tempestades e das correntes bravias do Oceano, pensamos estar em solo razoavelmente seguro dentro do barco. O problema é quando algum grupo mais afoito toma o poder no convés e resolve afundar a embarcação.

Todo esse preâmbulo busca introduzir uma reflexão sobre a cultura e a história dos trabalhadores brasileiros e a Justiça do Trabalho. Essa relação tem se tornado mais explícita nos últimos anos, com o aumento exponencial das pesquisas históricas envolvendo a Justiça do Trabalho e a história, em especial a história social do trabalho no Brasil. Uma das características desses estudos é a análise extensiva de processos trabalhistas, transformados, assim, em documentos históricos. Isso se dá em paralelo a um movimento, por parte do próprio Judiciário trabalhista, ou partes dele, de defesa da preservação física dos processos e da memória da instituição, surgido por volta dos anos 2000.[1]

Uma das principais descobertas dessas pesquisas é a confirmação da existência de uma “consciência jurídica de classe” no Brasil (expressão cunhada pelo sociólogo Aziz Simão, em 1962). Essa consciência jurídica embasaria a relação entre os trabalhadores e o Judiciário, entre outros sujeitos (os próprios patrões ou empresários e os sindicatos). Conforme a também socióloga Maria Célia Paoli, “a formação da classe operária brasileira não pode ser entendida sem considerar-se a intervenção legal do Estado nas relações de trabalho cotidianas” (1988).

Importante mencionar que essa relação essencial com a lei não se inicia com a Justiça do Trabalho ou com a Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, mas a partir de uma série de instrumentos legais que emergem já na Primeira República, antes da Era Vargas, com a primeira lei de Acidentes do Trabalho (1919), a Lei Eloy Chaves (que introduz a noção de seguridade social, em 1923), e a primeira Lei de Férias (1925), entre outras. Essas legislações eram fruto da mobilização dos trabalhadores, sindicatos e associações da época – num país recém-saído da escravidão –, mas também da ação cada vez mais intensa de parlamentares e bacharéis em Direito.

Com o advento da Justiça do Trabalho e da CLT, nos anos 1940, essa afinidade foi ampliada, em especial até o advento do golpe civil-militar de 1964. Pesquisas como as de VARUSSA (2012), SOUZA (2007), CORRÊA (2011), DROPPA (2018), REZENDE (2017), SILVA (2016), SPERANZA (2014) – sem esquecer a incontornável coletânea de GOMES e SILVA, 2013), são pequena amostra de trabalhos que evidenciam uma progressiva importância dos embates em torno das leis e suas interpretações nas relações de trabalho no Brasil, consubstanciados com um aprendizado da utilização dessa esfera de mediação por trabalhadores e patrões. Essa importância influiu diretamente na legitimidade da instituição da Justiça do Trabalho, com crescimento constante e crescente das reclamatórias ajuizadas.

Não há como discutir a relação Estado-classe trabalhadora no Brasil sem compreender essa mistura de discursos, ações e crenças dos operários em relação à aplicação da Justiça nas relações de trabalho. Os estudos revelam que a experiência de ser trabalhador no Brasil no século XX esteve diretamente relacionada à ideia de “possuir direitos” e de dispor de um espaço social – que poderia ser utilizado ou não – no qual fosse possível reivindicá-los de forma civilizada. Não seria exagero ver no exercício do Direito trabalhista o importante papel de legitimar a Justiça e o Estado para uma população imersa num país cuja realidade sempre foi marcada pela extrema desigualdade, ou, até, por uma espécie de “apartheid” social.

Diante de tantas urgências e desmontes que a atual Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) nos trouxe, uma das consequências menos mencionadas é a transformação na cultura dos direitos dos trabalhadores brasileiros, que havia conseguido sobreviver (não sem transformar-se) ao amordaçamento da Justiça do Trabalho e à repressão ao movimento sindical do período da ditadura e ao crescimento da terceirização a partir dos anos 1980. Se for concretizado agora o fim da Justiça do Trabalho, sacramenta-se a destruição de um elo importante entre a imensa maioria da população e o Estado. Perde-se um espaço – talvez o principal – de legitimação da Justiça brasileira, o que pode nos fazer adentrar numa disputa acirrada e sem freios entre uma maioria cada vez mais imersa na miséria e uma minoria privilegiada cada vez mais acuada e assustada com os “feios, sujos e malvados”. Ou, “homens rústicos”, como definiu um juiz do trabalho em relação a um mineiro de carvão nos anos 1940 no Rio Grande do Sul.

Nenhum poder se legitima somente sobre a opressão. As pessoas precisam confiar nele. Precisam esperar que aquela sociedade tenha algum lugar para elas. Precisam acreditar que há limites para os comportamentos sociais e que estes limites se dão dentro da lei – e que esta é igual para todos. “A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser justa. Não conseguirá parecê-lo sem preservar sua lógica e critérios próprios de igualdade; na verdade, às vezes sendo realmente justa”, escreveu certa vez o historiador britânico E.P.Thompson.

Durante anos, a Justiça do Trabalho foi razoavelmente bem sucedida em legitimar-se como mediadora (por vezes incômoda) das relações de trabalho, tanto entre empresários quanto entre trabalhadores, tendo como pressupostos de existência sua independência e a defesa de sua capacidade de impor valores universais às relações de trabalho. Acabar com ela e com a legislação trabalhista é apostar que milhões de trabalhadores não serão capazes, mais cedo ou mais tarde, de construir coletivamente novas formas de cultura e de resistência e de enfretamento, o que é bastante duvidoso. A cultura está em permanente transformação e só acaba quando não houver mais humanidade. Ou, metaforicamente, quando a tripulação afundar o barco.

Referências 

BIAVASCHI, Magda Barros; LÜBBE, Anita; MIRANDA, Maria Guilhermina. Memória e Preservação de Documentos: Direitos do Cidadão. São Paulo: LTR, 2007.

CORRÊA, Larissa Rosa. A tessitura dos direitos. Patrões e empregados na Justiça do Trabalho, 1953-1964. São Paulo: LTr, 2011.

DROPPA, Alisson. Alisson Droppa, Direitos trabalhistas: legislação, justiça do trabalho e trabalhadores no Rio Grande do Sul (1958-1964). Editora CRV, Curitiba, 2018.

FRENCH, John D. Afogados em leis. A CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

GOMES, Angela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da (org). A Justiça do Trabalho e sua história. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

PAOLI, Maria Célia Paoli. Labor, law and state in Brazil: 1930-1950. Tese de Ph.D., Birkbeck College, University of London, 1988.

REZENDE, Vinicius Donizete de. Vidas Fabris: Trabalho e conflito social no complexo coureiro-calçadista de Franca-SP (1950-1980). São Paulo: Alameda: 2017.

SILVA, Fernando Teixeira. Trabalhadores no Tribunal: Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do Golpe de 1964. São Paulo: Alameda, 2016.

SPERANZA, Clarice Gontarski. Cavando direitos: as leis trabalhistas e os conflitos entre os mineiros de carvão e seus patrões no Rio Grande do Sul (1940-1954). São Leopoldo/Porto Alegre: Oikos/ANPUH-RS, 2014.

THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

VANNUCCHI, Marco Aurélio; SPERANZA, Clarice Gontarski; DROPPA, Alisson. Direito e Justiça social: a historiografia acerca da Justiça do Trabalho no Brasil. In: Fabiano Engelmann. (Org.). Sociologia política das instituições judiciais. Porto Alegre: UFRGS/CEGOV, 2017, p. 151-174.

VARUSSA, Rinaldo José. Trabalhadores e a construção da Justiça do Trabalho no Brasil (décadas de 1940 a 1960). São Paulo: LTr, 2012.

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[1] Sobre a preservação dos processos trabalhistas consultar: BIAVASCHI, LÜBBE, MIRANDA, 2007.

Alisson Droppa é Pós-doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas/SP.

Clarice Gontarski Speranza é Professora do departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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