A invisibilidade do racismo no direito do trabalho

O déficit racial nas leituras críticas do Direito do Trabalho no país se expressa tanto pelo silenciamento histórico da estrutura racializada como por análises superficiais ou pontuais sobre o papel do trabalhador negro na história desse ramo juslaboral.

João Victor Marques da Silva

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 12/08/2020

O presente texto é um diálogo com o escrito do Professor Rodrigo Carelli, intitulado “O projeto de regulamentação do trabalho em plataformas: um novo Código Negro?”, que pode ser acessado aqui, no qual se pretende, como ponto de partida, problematizar a invisibilidade do racismo no campo crítico do Direito do Trabalho.  

No referido escrito, há uma apurada análise do projeto de lei, de autoria da Deputada Federal Tabata Amaral (PDT), que propõe regulamentar o trabalho sob demanda realizado por meio de plataformas digitais, o que foi denominado pelo docente da UFRJ como uma “espécie de Código Negro do Século XXI”. O texto desconstitui toda uma argumentação ideológica acerca do trabalho em plataformas digitais, o que o mencionado projeto de lei assenta na sua regulação jurídica, o que somente acentua, no plano jurídico, o grau e a intensidade da exploração do trabalhador e a correspondente desproteção social já materialmente concretizada. Neste particular, o texto é irretocável, pois se estrutura sob uma perspectiva crítica e devidamente fundamentada.

Inicialmente, cabe pontuar que uma perspectiva que se propõe crítica deve superar os imaginários e lógicas de identificação social construídos ou produzidos, cuja função é escamotear o conflito entre as classes sociais, dissimular a dominação e ocultar a presença do particular, dando-lhe a aparência de universal. Guerreiro Ramos já sinalizava que a consciência crítica surge quando o ser humano ou um grupo social reflete sobre os determinantes históricos e se conduz diante deles como sujeito, resultando daí não apenas uma conduta humana desperta e vigilante, mas também uma atitude de domínio de si mesma e do exterior. Em razão disso, o autor propõe uma redução sociológica como procedimento metódico que procurar tornar sistemática a assimilação crítica dos produtos científicos importados, devendo o cientista social adotar sistematicamente uma posição de engajamento ou de compromisso consciente com o seu contexto.

A partir dessa compreensão, é imprescindível pontuar que o campo crítico do Direito do Trabalho no Brasil, alinhado com uma perspectiva de proteção à classe trabalhadora na regulação jurídica do conflito capital – trabalho, necessita de uma autocrítica quando aplica os seus olhares para a realidade brasileira. Em sua quase totalidade, tais olhares não dialogam com a estrutura racializada da nossa sociedade. Nessa linha, uma perspectiva mais crítica pressupõe reconhecer as limitações ou a ausência da própria crítica sobre certos aspectos dessa estrutura. Em outras palavras, é necessário romper com o senso comum teórico dos juristas no tocante ao debate racial no Direito do Trabalho, sendo, portanto, este o cerne destas mal traçadas linhas.

O que estaria então incomodando este presente escrevinhador, no sentido de socorrer as suas pretensas alegações? Se o referido autor teria construído o seu texto sob uma perspectiva crítica, o que estaria por fim circunscrito ao senso comum teórico dos juristas? O que sucumbiria então à uma certa superficialidade analítica no texto em discussão, que destoa da mencionada irretocabilidade? O presente trecho do texto é o ponto de partida:

“A segunda ignorância do projeto [de lei, de autoria da Deputada Federal Tabata Amaral (PDT)] é acerca do significado para o mundo do trabalho da implantação do modelo proposto pelas plataformas digitais. Os planos, indubitavelmente, são de criação de uma fissura legal com o estabelecimento de uma camada da população excluída legalmente dos direitos fundamentais previstos na Constituição. É a normalização de uma subcasta de quase-cidadãos, alijados de direitos fundamentais, em sua maioria negros ou pardos. A partir dessa fissura, os trabalhadores que se mantêm na proteção passam a ser vistos como “privilegiados”, por gozarem de direitos fundamentais. A pretensão é justamente essa divisão entre trabalhadores do século XX e trabalhadores do século XXI; uns cidadãos plenos, mas cuja cidadania é vista como um privilégio; outros, os do século XXI, subcidadãos com proteções ínfimas contra a exploração”.

Primeiro, há uma aparente crença numa subcidadania como algo presente em nossa sociabilidade atual, o que é visto no campo crítico do Direito do Trabalho, contudo não se restringe ao nosso tempo histórico, mas é sim da própria natureza estrutural da regulação social do trabalho no Brasil. Certamente, a forma açodada como foi tratada na referida passagem induz o leitor a pensar nesse sentido, contudo precisa ser sempre problematizado para evitar compreensões indevidas. 

Em outras palavras, a subcidadania é intrínseca ao modo de regulação social do trabalho no país, sendo, portanto, historicamente fundante na nossa sociabilidade. Afirmar que o referido projeto de lei instituiria subcidadãos obscurece a devida compreensão da experiência histórica da CLT. Vejamos o porquê.

Raissa Alves observa que, historicamente, mesmo no contexto do trabalho livre, a população negra tende a se inserir de forma marginalizada e precarizada no mercado de trabalho, sendo que nas ocupações em que é majoritária a presença da população negra, frequentemente há acesso precário ou inexistência da aplicação de direitos trabalhistas, como no meio rural ou no trabalho doméstico. Assim, para a autora, a existência permanente de uma camada de excluídos sociais, sem acesso a direitos básicos, mitiga ou rompe com o patamar de proteção trabalhista e permite a crescente radicalização da exploração do trabalho. Ainda, a referida autora observa que, embora a força de trabalho no Brasil tenha sido, desde as suas origens, predominante negra, a narrativa sobre o trabalho e o Direito do Trabalho identifica-se com a história do trabalho livre, assalariado, a partir da vinda de imigrantes europeus. 

Essa observação é relevante para compreender como se inseriram os trabalhadores e trabalhadoras negras no Estado Novo (1937-1945), época histórica da qual resulta a conformação da CLT. O projeto celetista envolvia necessariamente a ideia de uma cidadania regulada. Para Wanderley Guilherme dos Santos, a associação entre cidadania e ocupação proporcionará as condições institucionais para que se inflem, posteriormente, os conceitos de marginalidade e de mercado informal de trabalho, uma vez que nestas últimas categorias ficarão incluídos não apenas os desempregados, os subempregados e os empregados instáveis, mas, igualmente, todos aqueles cujas ocupações, por mais regulares e estáveis, não tenham ainda sido regulamentadas.

Em suma, historicamente, a subcidadania é inerente ao modo de regulação social do trabalho expresso pela CLT, devendo ser pontuada que a “normalização de uma subcasta de quase-cidadãos, alijados de direitos fundamentais, em sua maioria negros ou pardos” não é uma novidade histórica. Os quase-cidadãos – os pré-cidadãos, na linguagem de Wanderley Guilherme dos Santos – de outrora foram os trabalhadores rurais e as trabalhadoras domésticas, ambas categorias tardiamente incluídos na proteção trabalhista e sistematicamente sonegada a efetividade de seus direitos trabalhistas.

Segundo, há um déficit racial, intencional ou não, nas leituras críticas do Direito do Trabalho no país. Veja que o Professor Rodrigo Carelli consegue articular – ou numa linguagem moderna, fazer um link – a situação dos trabalhadores de plataformas digitais com o Código Negro, na França de 1685, no qual se regulava o trabalho dos negros escravizados nas então colônias francesas nas Américas. Não haveria na nossa historicidade um único exemplo que pudessem expressar um link mais concreto com a realidade brasileira, tal como suscitado pelo autor no referido texto? De uma perspectiva crítica, portanto histórica, a França sugeriria uma melhor leitura do que a própria realidade brasileira?

Note que outra marca da nossa sociabilidade é exatamente ser permeada historicamente pela estrutura racializada, sendo que esta é presente na gênese da regulação social do trabalho no país. Nessa linha, a sociedade brasileira apresenta uma estrutura marcada pela trama do racismo com o capitalismo, que intensifica a superexploração do trabalho e promove marcadores sociais delineados por critérios raciais, o que complexifica as tensões e conflitos decorrentes. Tal contexto implica necessariamente para um pesquisador crítico, notadamente no Direito do Trabalho, se imiscuir na devida compreensão da complexidade do racismo brasileiro e, dentro dessa realidade social concreta, superar as limitações do locus branco – negro, principalmente o pacto narcísico da branquitude

Portanto, é estar disposto a ir para além da zona de conforto e navegar em mares tormentosos, mas não menos reveladores das artimanhas da estrutura racializada. A insistência aqui é densificar toda a potencialidade da crítica, latente ilustrativamente no texto do docente da UFRJ. Nesse sentido, por que não então centrar a articulação da situação dos trabalhadores de plataformas digitais com uma das inúmeras greves, revoltas, paralisações e lutas cotidianas de trabalhadores, escravizados ou libertos, que explodiam no século XIX no Brasil, ilustrativamente, a primeira greve no país, a dos Ganhadores, na cidade de Salvador, em 1857? Inclusive o próprio autor já fez uma articulação pertinente, como podemos evidenciar aqui.

Uma certa visão restrita da nossa historicidade do trabalho se repete no campo crítico do Direito do Trabalho, de modos diversos, em Maurício Godinho Delgado, Jorge Luiz Souto Maior e Wilson Ramos Filho. Essa limitação precisa ser enfrentada, debatida e transformada, para, então, ser definitivamente superada.

Dessa forma, tal déficit racial nas leituras críticas do Direito do Trabalho no país se expressa tanto pelo silenciamento histórico da estrutura racializada como por análises superficiais ou pontuais sobre o papel do trabalhador negro na história desse ramo juslaboral.

Terceiro, há uma certa crença do campo crítico do Direito do Trabalho numa ideia de modernidade e de progressividade dos direitos trabalhistas na realidade brasileira, algo que, me parece, embora não seja compartilhado pelo Professor Rodrigo Carelli, precisa ser discutido mais detidamente.

Veja que racismo e capitalismo são frutos da modernidade, sendo, portanto, imprescindível pensá-los como intrinsicamente articulados no sentido de cumprir papéis específicos nas tramas expressas pelas relações coloniais. Assim, pensar a modernidade é centrar-se na articulação dinâmica entre o capitalismo e o racismo, de modo a subsidiar a compreensão das especificidades das relações raciais num país de capitalismo dependente, como é o Brasil.

Nesse sentido, a modernidade periférica ou tardia se expressa no Brasil como violência privada no ambiente de trabalho, controle social dos trabalhadores, rigidez da hierarquia social, desigualdades institucionalizadas e racismo estrutural. Em outras palavras, delimitação restritiva do sujeito laboral objeto do âmbito de proteção do Direito do Trabalho, universalização dos direitos sociais trabalhistas extremamente limitada e marginalidade e informalidade do mercado de trabalho brasileiro. Não existiria, portanto, a “criação de uma fissura legal com o estabelecimento de uma camada da população excluída legalmente dos direitos fundamentais previstos na Constituição”, mas sim a persistência de um fosso histórico de exclusão. Portanto, há uma baixa ou inexistente capilaridade da proteção social decorrente do Direito do Trabalho para uma gama de trabalhadores e trabalhadoras informais, subocupados, desalentados e por conta própria, notadamente negros.

Em suma, as considerações aqui postas são no sentido de extrair toda a potencialidade do campo crítico do Direito do Trabalho e, assim, a compreensão ampla do racismo para todos aqueles pesquisadores que atuam na defesa da classe trabalhadora. Como afirmava Max Horkheimer, o conformismo do pensamento, a insistência em que isto constitua uma atividade fixa, um reino à parte dentro da totalidade social, faz com que o pensamento abandone a sua própria essência, a transformação histórica.

No mesmo sentido, Guerreiro Ramos observava que as tarefas de crítica e autocrítica não poderão ser realizadas sem que ocorra mudança de atitude entre os intelectuais, pois tais tarefas são incompatíveis com o individualismo. Para o autor, a autocrítica implica também na disposição para suportar o debate, porque a indução dos critérios de pensamento a partir da realidade é trabalho coletivo, cuja validade se garante pelo controle de todos.

Que assim sejam compreendidas as mal traçadas linhas desse presente texto. Em tempos de lacração e cancelamento, ambos oriundos das políticas identitárias, que, na maioria dos casos, interditam o debate e colocam os sujeitos históricos na comodidade da capciosa tolerância da estrutura racializada, se pôr no debate público pode ser uma tarefa árdua, como navegar em mares tormentosos à deriva, mas extremamente necessário para construir pontes dialógicas e críticas que superem o racismo e a exploração do trabalho pelo capital.

João Victor Marques da Silva é doutorando em Direito – PPGD UFBA, mestre em Políticas Sociais e Cidadania – UCSal, especialista em Direito e Processo do Trabalho, membro do Grupo de Pesquisa Transformações do Trabalho, Democracia e Proteção Social (FDUFBA) e advogado.

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