A história revela: desenvolvimento econômico ocorre quando o padrão de vida da população aumenta. Entrevista com Thales Zamberlan Pereira

Escravos em terreiro de uma fazenda de café na região do Vale do Paraíba, c. 1882. Vale do Paraíba, RJ. Fotografia: Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles

A história da escravidão no Brasil tem suas peculiaridades que colocam o país no topo do ranking das últimas nações a acabarem com o regime escravocrata no mundo. E saber quais foram as escolhas no modelo agrícola da plantation é essencial, também, para compreender porque nestes tristes trópicos a escravidão se manteve por séculos. “A cana-de-açúcar foi o produto que tornou o trabalho escravo no Brasil lucrativo. A produção de açúcar, por necessitar de mais mão de obra que outras commodities como o tabaco, algodão e café, claramente estimulou o aumento do tráfico para o Brasil”, explica o professor e pesquisador Thales Zamberlan Pereira, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Os impactos nocivos desta exploração contínua ultrapassam as questões civilizatórias de colocar pessoas sob condições desumanas e seus efeitos alcançam o próprio desenvolvimento do Brasil. “A escravidão limitou o desenvolvimento de um mercado de trabalho livre no Brasil. Escravos trabalharam em indústrias no Brasil, mas não existe evidência de sociedades que conseguiram expandir o setor industrial sem um mercado de trabalho livre. O que a nossa pesquisa indica é que fatores normalmente apontados como positivos para a industrialização, como capital humano, só foram importantes para o surgimento de fábricas após o fim da escravidão”, descreve o entrevistado.

O efeito negativo, hoje ainda, é transoceânico. “As marcas da escravidão estão presentes em todas as regiões que participaram desse sistema deplorável. Está nas regiões africanas que participaram do tráfico. Pesquisas mostram que, atualmente, regiões onde ocorreu a captura de escravos para o tráfico transatlântico possuem menor nível de confiança interpessoal. Não ter confiança em concidadãos, claramente, é negativo para o desenvolvimento econômico. A marca da escravidão também está presente nos países que inicialmente intermediaram o tráfico”, frisa Pereira.

Além disso, o pesquisador chama atenção para o foco nas pessoas, no investimento humano. “Ampliar a potencialidade das pessoas através da educação é um caminho mais provável para o desenvolvimento econômico. Claro que não é o único, desenvolvimento é algo complexo e não existe uma fórmula para que ocorra. No entanto, se os recursos são escassos, a literatura sugere que investir nas pessoas é mais vantajoso que repassar dinheiro para o dono da fábrica”, pontua.

Thales Zamberlan Pereira é graduado em economia pela Universidade Federal de Santa Maria, com mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado na Universidade de São Paulo – USP, ambas formações também em economia. Atualmente é professor da Escola de Economia de São Paulo EESP-FGV, Visiting Fellow do Institute of Latin American Studies, University of London, Visiting Graduate Researcher na Universidade da Califórnia, Los Angeles – UCLA e Visiting Scholar (Newton Fund – British Academy) da London School of Economics – LSE. Juntamente com Nuno Palma, Andrea Papadia e Leonardo Weller, é autor do artigo Slavery and development in nineteenth century Brazil.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o papel da escravidão no desenvolvimento econômico de longo prazo no mundo? Que relações podemos estabelecer entre a escravidão e o surgimento e desenvolvimento do capitalismo?

Thales Zamberlan Pereira – A escravidão esteve presente em diversas sociedades ao longo do tempo, no entanto, o debate sobre o papel da escravidão no desenvolvimento econômico refere-se ao período da primeira Revolução Industrial (aproximadamente 1780-1820). Esse debate começa com o trabalho de Eric Williams no início da década de 1940 (apesar de ter sido discutido anteriormente). Williams argumenta que o sistema mercantilista dos séculos 17 e 18, que era caracterizado por monopólios e pelo uso da escravidão, ajudou no surgimento do “capitalismo industrial”. O desenvolvimento econômico da Inglaterra, portanto, dependeu da expansão dos mercados coloniais nas Américas e do trabalho escravo.

Essa visão foi contestada posteriormente com estudos que mostravam que o comércio de escravos representava uma fração pequena da renda total da Inglaterra e, portanto, não poderia ser algo essencial para o surgimento da Revolução Industrial. Por ser um debate amplo, recomendo aos interessados o livro da Barbara Solow, Slavery and the Rise of the Atlantic System (Solow bridge University Press, 1991), e o livro do Kenneth Morgan, Slavery, Atlantic Trade and the British Economy, 1660–1800 (Cambridge University Press, 2001). Esse último possui um excelente resumo do debate. Esse debate, contudo, não terminou e estudos quantitativos como o de Ellora Derenoncourt (Atlantic slavery’s impact on European and British economic development [Harward University, 2008]) mostram que cidades europeias ligadas ao tráfico transatlântico cresceram mais que a média durante o período que antecede a Revolução Industrial.

É importante salientar que o nosso estudo sobre o papel da escravidão no Brasil (Slavery and Development in Nineteenth Century Brazil, que será publicado na revista Capitalism: a journal of history and economics) não está ligado diretamente ao debate do Williams. O nosso objetivo é ver como a escravidão impactou o desenvolvimento industrial em um país periférico no final do século 19. O fato de apresentarmos algumas evidências que a escravidão foi negativa para a industrialização brasileira não invalida a hipótese levantada por Williams.

IHU On-Line – A produção de monocultura baseada em trabalho escravo foi desenvolvida em diversos lugares do mundo desde o período das grandes navegações e conquistas no século XVI. Quais foram as particularidades do Brasil com relação a esse modo de produção?

Thales Zamberlan Pereira – As particularidades do Brasil não foram no uso de escravos na produção de commodities, mas na presença e atuação dos escravos nas outras esferas da sociedade. Diferente de outras regiões escravocratas nas Américas, como o sul dos Estados Unidos e o Caribe, no Brasil existia uma grande quantidade de escravos que participavam em uma série de atividades que não se encaixam na visão tradicional da monocultura.

Nas cidades, durante o início do século 19, muitos escravos trabalhavam como vendedores de alimentos e outros bens e eram relativamente independentes dos seus “senhores”. Existe evidência de escravos que eram donos de “tendas” (pequenos comércios), escravos proprietários de outros escravos e até mesmo escravos capitães de barcos que faziam comércio de cabotagem. De forma surpreendente, esses escravos eram capitães em barcos com trabalhadores brancos e livres. Claro que escravos em posições de poder não era a norma, mas a sua existência mostra como a escravidão era um sistema disseminado na sociedade brasileira.

IHU On-Line – Quando e como se institucionaliza o trabalho escravo como um modelo de produção no Brasil? Qual o percentual de escravizados africanos que chegam ao Brasil entre os séculos XVI e XIX e como esse contingente impacta o modelo de produção?

Thales Zamberlan Pereira – A institucionalização do trabalho escravo ocorre no período do crescimento da produção de açúcar no Brasil, entre o final do século 16 e primeira metade do século 17. Existe evidência mostrando que na década de 1630, quando o Brasil era o maior produtor e exportador de açúcar do mundo, o trabalho escravo já era dominante no Brasil. A partir desse momento, o tráfico de escravos no Brasil cresceu até a década de 1820, quando o transporte forçado de pessoas caiu no Nordeste e se concentrou no Sudeste. Se pegarmos o período de 1550 até o fim do tráfico de escravos no Brasil, em 1850, o Brasil recebeu 36% do total de escravos que saíram de portos no continente africano.

IHU On-Line – O senhor estuda o trabalho escravo na produção de algodão, mas antes os escravizados já atuavam nas lavouras de cana-de-açúcar e, mais tarde, nos engenhos de beneficiamento. Como analisa esse período?

Thales Zamberlan Pereira – A cana-de-açúcar foi o produto que tornou o trabalho escravo no Brasil lucrativo. A produção de açúcar, por necessitar de mais mão de obra que outras commodities como o tabaco, algodão e café, claramente estimulou o aumento do tráfico para o Brasil. O motivo para essa diferença ocorre porque a cana-de-açúcar precisa ser processada em um curto período após o seu corte, ela não pode ser armazenada como as outras commodities.

Como esse processamento exige algum maquinário, a produção de açúcar sempre demandou mais investimento do que as outras commodities citadas. No entanto, é importante ressaltar que a existência de maquinário no setor agrícola não implica que ocorreu um processo de industrialização no país. Sempre existiram máquinas na produção agrícola. Industrialização é um termo que remete ao que chamamos de era moderna, que começa no final do século 18 (ou com o fim das guerras napoleônicas, em 1815).

IHU On-Line – Voltando ao Brasil do algodão, como analisa esse período de extensa produção e exportação dessa matéria-prima que, segundo alguns, alimentou a indústria inglesa de produção de tecidos. Como o trabalho escravo no Brasil se inseria nessa cadeia?

Thales Zamberlan Pereira – A escravidão não era uma condição necessária para a produção de algodão. Como exemplo, após o fim da escravidão no sul dos Estados Unidos, na década de 1860, o plantio do algodão ocorreu com trabalhadores livres. No mesmo período, apesar da escravidão, o plantio de algodão no Brasil era feito em grande parte por trabalhadores livres. No entanto, durante o início da produção de algodão no Brasil (aproximadamente entre 1760 e 1830) a escravidão era utilizada porque a oferta de trabalhadores era escassa. Em uma região com baixa densidade populacional, como era o caso do Maranhão, a forma mais lucrativa de começar a produção de commodities para exportação era o transporte forçado de trabalhadores.

IHU On-Line – Seus estudos têm apontado que a escravidão atrapalhou o desenvolvimento industrial do Brasil. Gostaria que recuperasse esses seus argumentos.

Thales Zamberlan Pereira – A escravidão limitou o desenvolvimento de um mercado de trabalho livre no Brasil. Escravos trabalharam em indústrias no Brasil, mas não existe evidência de sociedades que conseguiram expandir o setor industrial sem um mercado de trabalho livre. O que a nossa pesquisa indica é que fatores normalmente apontados como positivos para a industrialização, como capital humano, só foram importantes para o surgimento de fábricas após o fim da escravidão. Esse resultado é coerente com o argumento qualitativo que muitos historiadores fizeram anteriormente, mas nós oferecemos alguma evidência quantitativa para essa hipótese. É claro que o nosso estudo não encerra essa questão, mas o nosso objetivo é contribuir para o debate, não o encerrar.

IHU On-Line – Algumas províncias do nordeste, que também foram destaque na produção algodoeira, demoraram menos do que outras do sul e sudeste para reconhecer a necessidade do fim do trabalho escravo. O que isso significa?

Thales Zamberlan Pereira – O fim da escravidão ocorreu também pela necessidade decrescente do trabalho escravo em algumas regiões. Quando a escravidão estava presente em todas as partes da sociedade brasileira, o que ocorreu até a primeira metade do século 19, era difícil pensar em abolição. Quem discutia o fim da escravidão nesse período era considerado um revolucionário, alguém inconsequente e potencialmente perigoso. No entanto, com o aumento dos preços dos escravos após o fim do tráfico transatlântico, em 1850, a escravidão diminuiu nas cidades e se concentrou no campo, especialmente os campos de café no Sudeste.

Durante a segunda metade do século 19, a escravidão se tornou algo distante na vida de muitas pessoas, especialmente em algumas regiões no Nordeste. O Ceará, por ser a primeira província a abolir a escravidão, em 1884, é um bom exemplo. Sem um setor agrícola ou industrial que necessitasse grande quantidade de trabalhadores, o uso de escravos se tornou cada vez menos lucrativo ao longo do século 19. Em 1872, o Ceará (junto com o Amazonas) era a província brasileira com o menor percentual de escravos na população total. A não dependência econômica da escravidão ajudou, portanto, na compreensão que esse sistema era bárbaro, contrário a qualquer princípio civilizatório. Não é coincidência que muitos movimentos abolicionistas surgem no Nordeste na segunda metade do século 19.

IHU On-Line – O que desencadeia o processo de industrialização no Brasil? Como ficam os escravizados bem no começo desse processo? Qual o peso da imigração no desenvolvimento industrial do Brasil? E como ficam os escravizados durante a entrada de mão de obra estrangeira?

Thales Zamberlan Pereira – Existe um longo debate sobre o início do processo de industrialização no Brasil. A visão tradicional argumenta que a industrialização durante o final do século 19 foi resultado da expansão do setor exportador. Essa expansão induziu investimentos em bens de consumo que eram anteriormente importados, como vestuário e alimentos processados. Além desse processo mais conhecido, pesquisas mais recentes indicam que o crescimento das exportações também estimulou a produção nacional de maquinários que eram utilizados no setor agrícola.

Apesar do papel das exportações, especialmente do café, no processo de industrialização, é importante lembrar que diversos países considerados “periféricos” – como Itália, Japão, Suécia e Rússia – começaram a se industrializar durante esse período, então não podemos interpretar a industrialização brasileira apenas como um efeito de encadeamento da produção de café. O aumento do comércio internacional no último quarto do século 19 provavelmente contribuiu para que a produção industrial, que anteriormente era realizada nos países centrais, tenha se espalhado para países com custo de mão de obra mais baixo. Sobre os escravizados, a visão mais comum é que eles foram deixados “de fora” do processo de industrialização porque foram substituídos por imigrantes. Não existe dúvida que o racismo foi um fator importante na diminuição da demanda por trabalhadores negros e que a chegada de estrangeiros facilitou o isolamento de trabalhadores não-brancos.

No entanto, fatores de oferta de trabalho também foram importantes. Olhar apenas para a demanda de trabalhadores ignora o fato que o mercado de trabalho não é um “jogo de soma zero”, ou seja, a oferta de empregos não é fixa. A chegada de imigrantes trouxe uma série de benefícios para o Brasil, incluindo a expansão do mercado de trabalho através da criação de negócios/empresas. A população negra sofreu exclusão no mercado de trabalho também porque foi privada de acesso à educação. Com o crescimento da economia brasileira e a diversificação de atividades, capital humano ficou mais importante, diminuindo as possibilidades de emprego da população negra. Para se ter uma dimensão do problema, o percentual de alfabetização das pessoas pretas no Brasil (no censo, negros são pretos e pardos) era de 20%, enquanto dos brancos era de 52%.

IHU On-Line – Diversos pesquisadores apontam que a escravidão deixou feridas ainda não cicatrizadas no Brasil. Na economia e nos processos produtivos de hoje também existem essas marcas? Quais são e como superá-las? Como compreender o papel da escravidão no desenvolvimento econômico de longo prazo no Brasil (das plantations à industrialização plena)?

Thales Zamberlan Pereira – As marcas da escravidão estão presentes em todas as regiões que participaram desse sistema deplorável. Está nas regiões africanas que participaram do tráfico. Pesquisas mostram que, atualmente, regiões onde ocorreu a captura de escravos para o tráfico transatlântico possuem menor nível de confiança interpessoal. Não ter confiança em concidadãos, claramente, é negativo para o desenvolvimento econômico. A marca da escravidão também está presente nos países que inicialmente intermediaram o tráfico. O livro de Nicholas Draper (The Price of Emancipation [Cambridge University Press, 2009]) mostra que fortunas foram feitas com a emancipação do tráfico nas colônias britânicas.

Por fim, a escravidão deixou marcas nas sociedades que receberam os escravos. O segregacionismo legal dos Estados Unidos até a segunda metade do século 20 é apenas o exemplo mais explícito desse processo. No Brasil, portanto, esse legado negativo claramente está presente. A discriminação no Brasil é explicita, mas se diz velada. Ela ocorre pela ausência histórica de negros em espaços de possibilidades: nas escolas e universidades, e em postos de trabalho mais qualificados. Existem diversos estudos mostrando que pretos recebem menos que brancos mesmo com o mesmo nível educacional e outras características observáveis como idade e sexo.

IHU On-Line – No Brasil de hoje, ainda há quem defenda que o desenvolvimento econômico e social só será alcançado com uma reindustrialização. O senhor acredita nisso? Por quê?

Thales Zamberlan Pereira – Desenvolvimento econômico ocorre quando o padrão de vida da população aumenta. Não existe evidência que a existência de indústria em um país seja condição necessária para que isso ocorra. A indústria era importante no passado porque o crescimento da produtividade dos outros setores, como a agricultura, era muito baixo. Isso não é mais verdade. Diversificação econômica é positiva, mas não pode vir ao custo da penalização de outros setores da sociedade. Isso ocorre quando assumimos que o único caminho possível é através da industrialização e, portanto, esse setor deve receber subsídios utilizando recursos extraídos de outros setores. Ampliar a potencialidade das pessoas através da educação é um caminho mais provável para o desenvolvimento econômico. Claro que não é o único, desenvolvimento é algo complexo e não existe uma fórmula para que ocorra. No entanto, se os recursos são escassos, a literatura sugere que investir nas pessoas é mais vantajoso que repassar dinheiro para o dono da fábrica.

Fonte: IHU On-Line
Texto: João Vitor Santos
Data original da publicação: 29/01/2021

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