A Greve de 1980: redes sociais e espaço urbano na mobilização coletiva dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo

Francisco Barbosa de Macedo

Fonte: Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 3, n. 5, p. 136-165, jan./jun. 2011.

Resumo: Em 1980, milhares de metalúrgicos do ABC paulista realizaram uma das mais intensas e duradouras greves da classe trabalhadora brasileira. Durante 41 dias, eles resistiram à ampla repressão que lhes foi lançada pelos patrões e pelo regime militar, a qual muito colaborou para que a mobilização coletiva dos trabalhadores se espraiasse pelo espaço urbano – especialmente, pelas ruas de São Bernardo do Campo. Expulsos das fábricas e de importantes espaços públicos, os operários mantiveram a greve a partir, principalmente, dos bairros em que residiam, fomentando a politização de espaços e relações de suas vidas cotidianas e redefinindo a geografia da mobilização coletiva. Neste artigo, analisamos alguns aspectos desse processo, destacando a importância das redes sociais dos trabalhadores para a notável (re)apropriação do espaço urbano que caracterizou o movimento paredista.

Sumário: Linhas gerais de uma “nova” abordagem para um “velho” tema | Com um saber só de experiências feito… | Linguagem de classe e vocabulário de redes sociais na Greve de 1980 | Redes sociais em movimento na sustentação da Greve de 1980 | Redes sociais e formação de piquetes na Greve de 1980 | Conjuntura, redes sociais e mobilização coletiva na Greve de 1980

Linhas gerais de uma “nova” abordagem para um “velho” tema

Em 30 de março de 1980, muitos olhos, esperanças e cassetetes dirigiram-se para a cidade de São Bernardo do Campo, que se tornaria o epicentro da política nacional nos dias seguintes. Nessa data, aproximadamente 300 mil metalúrgicos do ABC paulista e de algumas cidades do interior do estado de São Paulo decidiram entrar em greve em face do não atendimento pelos patrões de suas reivindicações (aumento salarial de 7% pela produtividade e estabilidade no emprego por 12 meses). Em 31 de março, foi recusada pelos empresários a última contraproposta dos trabalhadores. Assim, a greve irrompe a partir de 1º de abril. Nos dias seguintes, os metalúrgicos de alguns municípios aceitariam a decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT). Desse modo, a partir de 9 de abril, apenas os metalúrgicos de São Bernardo, Diadema e Santo André mantiveram-se em greve, e os do último município optaram, em 5 de maio, pelo fim do movimento. Tal decisão só foi tomada pelos metalúrgicos de São Bernardo e Diadema em 11 de maio.

Numa conjuntura em que o modelo econômico do regime militar apresentava evidentes sinais de colapso, recebendo agudas críticas de diversos setores da sociedade, e na qual forças sociais – como a imprensa, o movimento estudantil, a Igreja e a Ordem dos Advogados do Brasil – pressionavam pelo aprofundamento da chamada Abertura, que os militares tentavam manter sob seu controle, os trabalhadores voltaram ao cenário público em que “reestrearam” com as greves de 1978. Com isso, abalavam os arranjos políticos da transição para o regime democrático que iam sendo articulados, até então desconsiderando o operariado.

A Greve de 1980 – assim como as de 1978 e a de 1979 – recebeu, imediata e posteriormente, uma avalanche de estudos acadêmicos, os quais, em sua maioria, focalizaram os locais de trabalho, a conjuntura (política, econômica e social) do país e as organizações formais dos operários. Nesse movimento, as explicações mais variadas vieram à tona: da luta econômica pura e simples contra o arrocho salarial e a superexploração à resistência operária contra a organização capitalista do processo de trabalho, passando pelo resgate da dignidade, até a formação de um novo tipo de sindicalismo, entre outras. A questão é que as greves do ABC paulista surpreenderam boa parte dos acadêmicos. Afinal, segundo previsões da sociologia do trabalho dos anos 60 e 70, pouco se poderia esperar em termos de ação política autônoma dos operários brasileiros, sobretudo devido à sua predominante origem migrante e rural. Além disso, os discursos e as práticas sindicais que emergiam, principalmente no ABC paulista, eram apresentados, por muitos militantes e acadêmicos, como profundamente distintos tanto do que se observava no peleguismo vigente quanto do que se vira nas experiências sindicais do pré-64, enfeixadas sob o rótulo de “sindicalismo populista”. Entretanto, nos anos 80 e, mais acentuadamente, na década de 90, desdobramentos do “novo sindicalismo” fomentaram a crença de que algumas de suas “promessas” não se cumpriram. No mesmo período, aumentaram os estudos que revisitaram o período 1945-1964 e reformularam interpretações sobre o “velho sindicalismo”, relativizando várias teses hegemônicas nos anos 70 e 80. Desse modo, atualmente, dispomos de uma imagem bastante matizada dos supostos contrastes entre “novo” e “velho” sindicalismo: onde, antes, havia somente rupturas, vemos, agora, algumas significativas continuidades.

Os eixos fábrica, conjuntura e organizações formais continuaram, todavia, monopolizando a atenção de historiadores e cientistas sociais que se debruçaram sobre o ABC paulista. Neste artigo, por outro lado, enfocamos, fundamentalmente, as redes sociais – baseadas em vínculos sociais primários, construídos no espaço social e territorial, envolvendo parentes, vizinhos, amigos, colegas e conterrâneos – tecidas pelos metalúrgicos residentes em São Bernardo do Campo e suas relações com a mobilização coletiva que sustentou, entre 1º de abril e 11 de maio, a “Greve dos 41 dias”. Considerando que tais redes estruturavam-se e operavam no cotidiano, exploramos aspectos deste, assim como apropriações da cidade deles resultantes, especialmente no transcorrer do movimento paredista.

Em nossa abordagem da Greve de 1980, além de adotarmos as clássicas reflexões thompsonianas sobre classes sociais, incorporamos também recentes contribuições de ramos da historiografia inglesa que procuram dar continuidade e reelaborar o pensamento de E. P. Thompson. Desse modo, partimos das assertivas de M. Savage de que a formação de classe é um processo complexo que envolve a construção de dois tipos de redes sociais, as de largo alcance e as densas. Nas palavras deste historiador inglês:

A formação de classe tem uma dinâmica dupla. Primeiro, ela envolve a construção de redes sociais de largo alcance, ligando membros da classe através de áreas locais diferentes – espaços de trabalho, bairros residenciais, pontos de lazer e assim por diante. Tais situações viabilizam a transmissão de informações, construção de organizações, troca de idéias e coordenação de mobilização. […] Segundo, a formação de classe também envolve a construção de vínculos densos que permitem a criação de identidades solidárias e comunais ao longo do tempo e na ausência de organização formal. Nesse ponto, as classes podem ser “extraídas” da “comunidade”, relações face a face, que conduzem à solidariedade social.

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