A falta de medo à revolução e o fim do Estado Social: o caso da Previdência

Rogério Viola Coelho

Fonte: Sul21
Data original da publicação: 05/06/2019

No bojo da revolução industrial do século XIX formaram-se organizações de assistência mutua, de adesão voluntária, com contribuição apenas dos trabalhadores, fundadas na solidariedade intraclasse. Poucos anos depois, surgiram os fundos agregando a contribuição das empresas, correspondendo objetivamente a uma concretização do valor “solidariedade” na vida social, com vistas a estabilizar a ordem capitalista, o que era de interesse empresarial e favorecia, naquela conjuntura histórica, as classes trabalhadoras.

Na década de oitenta do século XIX, na Alemanha, é editada a lei de seguros sociais instituindo a Previdência Social, com a contribuição e gestão do Estado, no governo de Bismarck, com o intuito de afastar “os riscos de uma revolução”. Pela primeira vez era acrescida à contribuição das partes da relação privada, a contribuição de toda a sociedade, através dos tributos arrecadados. Foi, portanto com a força do movimento operário e o medo de uma revolução, que avançou a concretização do valor solidariedade, penetrando no ordenamento como um princípio jurídico, para gerar obrigações jurídicas para toda a sociedade, tendendo mais tarde à uma solidariedade social plena no Estado Social.

A institucionalização dos direitos previdenciários no Brasil seguiu o mesmo caminho, tendo como base também a relação contratual de trabalho. O seu marco inaugural foi a criação das Caixas de Assistência para os trabalhadores urbanos, formadas por empresa, conforme regulamentação da lei nº 4682, de 1923. A sua instituição era facultativa, decorrendo caso a caso do concurso de vontades dos empregados e da empresa, que assumia a gestão, contribuindo ambas as partes para os fundos, sem contar com contribuição do Estado. Uma década depois surgem os institutos de aposentadorias e pensões, formados por categoria profissional, criados por lei, agregando à contribuição das partes da relação de trabalho, a contribuição do Estado. Grande momento!

A solidariedade se manifesta também no Brasil, primeiro como um valor em expansão, pautada pelo crescimento dos movimentos sociais das classes subalternas. Depois ingressa no ordenamento geral do Estado, convertendo-se em princípio jurídico. Mais adiante, ao ser positivado na Constituição, a solidariedade assume o estatuto de um princípio constitucional fundamental (art. 3º), gerador de garantias institucionais fundamentais na parte orgânica da Constituição. Para o financiamento da Seguridade Social, foram imputadas obrigações fundamentais: (a) às empresas e aos empregadores, beneficiários diretos do trabalho prestado ao longo da vida, (b) à toda a sociedade, beneficiária mediata do trabalho (através dos tributos pagos), (c) aos entes federados e ao próprio trabalhador (art.195). E o artigo 40, outorgou ao servidor público regime de previdência de caráter contributivo e solidário, atribuindo a obrigação correspondente a este direito ao ente público tomador do trabalho e ao próprio servidor.

Afirmando que a solidariedade positivada na Constituição é apenas entre gerações, na qual a geração de trabalhadores em atividade financia os benefícios da geração anterior e terá depois os seus benefícios financiados pelas gerações futuras, a doutrina ultraliberal quer aniquilar a base do Estado Social. Com a deformação do conceito, veicula a ideia da isenção dos obrigados que a Constituição aponta, para excluir dos cálculos duas fontes de financiamento e encontrar déficits crescentes nos dois sistemas previdenciários. A aprovação da PEC da previdência ensejará a instituição, por lei complementar, do sistema de capitalização individual, anunciado como “a nova previdência social”, levando a supressão das obrigações fundamentais do Estado e dos empregadores com o financiamento da previdência.

O único “obrigado” será o próprio trabalhador, que cobrará de si mesmo o direito de se aposentar. Ele será compelido a fazer uma poupança forçada, descontando em folha uma parte do salário, entregue a uma das empresas de previdência privada credenciadas, para aplicação no mercado, depois de separar o seu “dízimo” – uma taxa de administração incidente todos os anos sobre o capital acumulado. Os valores subtraídos mês a mês de milhões de trabalhadores serão destinados a investimentos geradores de desenvolvimento econômico, segundo o governo. Isto corresponde a uma inversão do sentido da solidariedade social, eis que agora serão os trabalhadores que irão destinar sua poupança forçada ao mercado, entidade na qual foi subsumida toda sociedade, apontada como beneficiária.

No Chile da ditadura de Pinochet, o sistema de capitalização individual, introduzido por FRIEDMAN e PAULO GUEDES, na década de oitenta, resultou em aposentadorias de menos de meio salário mínimo e sobraram vidas quando o beneficio aposentadoria se esgotou, Lá o “dízimo” das empresas de previdência foi crescendo a medida que as vidas foram tombando no caminho – de centenas credenciadas chegaram só seis, no fim da linha. Instituído o sistema de capitalização individual pela maioria eventual, será formalmente obrigatório para os novos servidores públicos e praticamente imposto aos trabalhadores que ingressarem no mercado.

Os que tiverem ingressado antes no Regime Geral, serão induzidos a migrar para a “nova previdência social”, ao disputar postos de trabalho com os novos, que não mais geram contribuição previdenciária para o empregador.

Neste futuro próximo, cada vez que a força de trabalho pedir ao homem trabalhador que a conduza ao mercado, irá lembrá-lo de que ela é portadora de um obsoletismo programado pela natureza, para recomendá-lo que seja prudente, levando junto sua carteira verde amarela, para confiar ao mercado uma fração do seu salário.

O estado geral de resignação diante da reforma anunciada contrasta com o ânimo de mais de um século, quando o movimento operário metia medo na burguesia, mobilizando sua solidariedade. Para esta mutação concorre certamente o discurso incessante da mídia, amplificando a crise para indicar a reforma como bala de ouro salvadora da sociedade; uma sinfonia certificada pela “sabedoria”, com entrevistas de hora em hora, de algum catedrático das nossas universidades publicas ou privadas, doutorados nas escolas de economia dos EUA. Na verdade, as classes dominantes desenvolveram mecanismos de poder e controle que lhes permitiram perder o medo à Revolução. E com isso tratam de levar – também – de arrasto as boas conquistas do Estado Social e a própria noção iluminista do Estado Democrático de Direito.

Rogério Viola Coelho é advogado trabalhista, formado pela Universidade Federal de Santa Maria, especializado em temas relativos aos servidores públicos.

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