A falácia dos argumentos em defesa da reforma

Denise Lobato Gentil

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 02/04/2019

A reforma da Previdência do governo Bolsonaro vem sendo justificada por argumentos econômicos elaborados para gerar conformismo e adesões sem questionamentos. São ideias manipuladoras, reforçadas por representantes do mercado financeiro e propagadas ampla e tediosamente pela mídia para fidelizar seguidores e aterrorizar a população com verdades absolutas e inquestionáveis. Vou aqui eleger algumas frases retiradas da exposição de motivos que acompanhou a PEC n. 6/2019.

O carro-chefe é a ideia de que “nosso nó fiscal é a razão primeira para a limitação do nosso crescimento econômico sustentável. Esse nó fiscal tem uma raiz: a despesa previdenciária”. Uma investigação atenta e honesta sobre as contas públicas faz saltar aos olhos que o nó fiscal são os juros. Nessa rubrica, o país gastou, em média, 6% do PIB ao ano entre 2016 e 2018, o que equivale a aproximadamente R$ 400 bilhões/ano, montante mais de duas vezes superior ao alegado déficit da Previdência, que, nos cálculos questionáveis do governo, teria chegado a R$ 195 bilhões em 2018. Com um agravante: juros beneficiam fundos especulativos, bancos, corporações não financeiras e pessoas com elevado nível de renda, enquanto a previdência alcança cerca de 28 milhões de pessoas e, desse total, 23,3 milhões ganham apenas um salário mínimo. O requinte de crueldade da comparação entre os dois tipos de gasto deveria causar vergonha e repúdio. Mas os meios de comunicação e o governo fazem profundo silêncio sobre o monumental gasto financeiro, como se essa anomalia da economia brasileira nem sequer existisse.

O governo costuma ameaçar com outra frase escolhida para causar impacto, calar os opositores e obscurecer o debate: “Enquanto nos recusarmos a enfrentar o desafio previdenciário, a dívida pública subirá implacavelmente e asfixiará a economia”. Não obstante, seria realmente o déficit da Previdência a causa do crescimento da dívida?

Cabe, de partida, esclarecer que apenas uma parte da dívida pública é de responsabilidade do Tesouro Nacional, e isso acontece sempre que ocorrem déficits primários. A outra parte da dívida, a maior delas, é criada e gerenciada pelo Banco Central. Isso significa que a dívida tem se expandido substancialmente em função dos elevados juros praticados pelo regime de metas de inflação, das variações no câmbio e das operações financeiras que implicam emissões líquidas de títulos públicos. Estas últimas compreendem o que se chama de operações compromissadas do Banco Central, isto é, compras e vendas de títulos que se destinam às aquisições de reservas internacionais e à regulação das condições de liquidez da economia, de forma a garantir que a taxa de juros de mercado seja compatível com a meta estabelecida pelo Copom. O estoque dessas operações cresceu exponencialmente, passando de 0,5% do PIB, em 2000, para 16,4%, em 2018, quando alcançou R$ 1,13 trilhão.

Esses números apontam que são os gerenciamentos dos juros e das reservas as duas principais causas do crescimento da dívida pública, não a previdência. O Banco Central, por meio das operações compromissadas, atende, ao mesmo tempo, à demanda de papéis de curto prazo dos bancos, tanto para remunerar seus excessos diários de caixa como para compor os ativos dos fundos de investimento que possuem. Portanto, o crescimento da dívida pública não corresponde exatamente ao déficit fiscal do Tesouro supostamente alimentado pelo gasto social, como costuma alardear o governo, mas ao ritmo de expansão das operações de valorização financeira do capital especulativo comandada pela política monetária do Banco Central.

Os números da Nota Técnica n. 47 do Banco Central, de setembro de 2018, não poderiam ser mais elucidativos. Entre 2014 e 2017, a dívida líquida do setor público passou de 32,6% do PIB para 53,8%. Os juros incorporados nesse período representaram, em termos acumulados, 26,4 pontos percentuais (p.p.), enquanto os déficits primários, apenas 6,6 p.p. Está na hora de colocar a nu o velho discurso acusatório do gasto previdenciário e mostrar que a verdadeira reforma que precisa ser feita é a da política monetária.

Outra frase proferida para gerar resignação popular com a reforma da Previdência merece destaque: “A dívida está em uma trajetória arriscada. Esse risco é devidamente cobrado pelos credores por meio de juros altos”. Para os porta-vozes do mercado financeiro e do governo, a reforma da Previdência teria, portanto, o poder de, ao reduzir a dívida pública, diminuir também os juros. É de desconfiar que os representantes do mercado proponham a reforma com o objetivo de reduzir juros, já que a queda da Selic limitaria a rentabilidade dos capitais investidos em títulos públicos, ainda mais em um momento de baixíssimo crescimento e elevada incerteza, quando justamente a fuga para os juros se torna um refúgio para os capitais.

Ora, ainda que essa fosse uma motivação real para a reforma da Previdência, é inevitável concluir que não seria necessário fazê-la, porque a Selic iniciou uma trajetória de queda desde fins de 2016 e atingiu seu mais baixo patamar nominal em 6,5% desde abril de 2018, mantendo-se nesse nível até o presente. A queda da meta de juros e da taxa de juros implícita ocorreu justamente em um período de crescimento da dívida pública. É, portanto, obrigatório desconfiar que os juros são determinados por outros fatores. Retirar o foco do gasto, da dívida e da previdência é um bom caminho.

O discurso de apresentação da reforma ao Congresso Nacional contém outros argumentos que carecem de explicações minimamente críveis. Segundo a narrativa do governo, a reforma da Previdência gerará uma economia de recursos de R$ 1 trilhão em dez anos e de R$ 3,4 trilhões em vinte anos. Até o momento, não se sabe como o governo chegou a esses números, porque a memória de cálculo não está disponível. Entretanto, esse resultado é, obviamente, uma miragem. O coração da proposta do ministro Paulo Guedes é o regime de capitalização. Essa transformação estrutural do regime previdenciário brasileiro, além de implodir o sistema de proteção social do país, provocará um gigantesco déficit. Isso porque há um custo de transição para sua implantação, que decorrerá da perda de receita que sofrerá o sistema de repartição, existente hoje, quando as contribuições dos novos ingressantes passarem a se destinar às contas individuais do regime de capitalização. As receitas cairão ao mesmo tempo que será necessário continuar a pagar o estoque de aposentados existente. Portanto, a curto e longo prazos, um regime de capitalização não gera economia; ao contrário, aumenta perigosamente o déficit da Previdência. Esse custo de transição costuma ser muito elevado.

No Chile, o déficit previdenciário passou de 3,8% do PIB em 1981, ano da implantação da capitalização, para um patamar acima de 5% do PIB nos vinte anos seguintes. A equipe econômica não mostrou nenhuma estimativa desse prejuízo para a sociedade brasileira. Há, portanto, um vácuo de informações que comprometem os rumos do país. Além disso, o regime de capitalização produzirá um resultado que já se sabe nocivo para grande parte da população que não conseguirá poupar, em função de salários baixos, informalidade, desemprego e trabalhos intermitentes. Poucos se aposentarão, e os que conseguirem receberão benefícios de valores baixos, que acabam em poucos anos, como demonstra a experiência de todos os países da América Latina que adotaram esse caminho. Criou-se um enorme contingente de idosos na pobreza extrema. Os fundos de capitalização tendem a derrubar o valor das aposentadorias, porque a taxa de administração anual é elevada, estando, no Brasil, entre 0,8% e 2% e, em certos casos, pode haver mais uma taxa de carregamento em torno de 2% sobre cada depósito feito pelo contribuinte. As administradoras acabam abocanhando grande parte do que é poupado.

O regime de capitalização, além de muito mais caro para os trabalhadores, expõe a população a um risco financeiro elevado que costuma ser subestimado. Os fundos aplicarão a poupança das pessoas em ações, títulos públicos, imóveis, derivativos e outros produtos financeiros cujos preços e taxas de retorno sofrem grandes oscilações e dependem, em parte, do próprio comportamento imprevisível e compulsivo dos agentes desse mercado. Perdas rápidas e profundas são muito comuns. Há um risco financeiro sistêmico não controlável pela regulação dos fundos de previdência.

A desproteção é o que menos importa. A saída apontada é privatizar, transformar um regime de solidariedade em mecanismos especulativos. Os fundos de previdência vão elevar enormemente a captação líquida e seus patrimônios e, o que é importante, vão desobrigar os empregadores de pagar contribuições sociais, livrando-os de participar da solução dos problemas sociais do país, o que entregará cada um à própria sorte.

Por fim, há no discurso oficial do governo a criação da falsa noção de que o regime de capitalização permitirá “a construção de um novo modelo que fortalece a poupança e o desenvolvimento no futuro”. Nada mais descolado da realidade brasileira. A “nova” previdência não favorecerá a poupança porque, segundo dados da Anbima, 92% do patrimônio dos fundos de previdência se destinam à aquisição de títulos de renda fixa do próprio governo. De fato, os fundos de previdência aparecem como os maiores proprietários de títulos nas estatísticas do Banco Central (25,5% do total). Assim, com o regime de capitalização, o governo vai deixar de pagar diretamente aposentadorias e pensões para os trabalhadores, para pagá-los indiretamente, a custos elevadíssimos, via intermediação dos fundos por meio da dívida mobiliária do Estado. Um péssimo negócio para a ampla maioria dos brasileiros.

Como se vê, a reforma da Previdência não tem nada a ver com ajuste fiscal ou com a eliminação de privilégios. É a exacerbação de uma ordem política e econômica que serve ao aprofundamento da acumulação financeira e condena o país ao retrocesso, à deterioração das desigualdades sociais e à ausência de democracia.

Denise Lobato Gentil é doutora em Economia e professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *