A esquerda não pode deixar o bolsonarismo sequestrar a renda básica

O interesse de Paulo Guedes na renda básica não tem nada a ver com bem-estar social. Mas para o campo progressista esta é uma pauta vital.

Rosana Pinheiro-Machado

Fonte: The Intercept Brasil
Data original da publicação: 05/08/2020

Moradora da comunidade do Morro da Cruz, em Porto Alegre, Rose vivia em profunda depressão porque seus filhos estavam no tráfico ou na prostituição. Sofria porque, na pobreza, não conseguia prover algo alternativo para eles.

Mas quando o auxílio emergencial de R$ 600 chegou, uma de suas filhas optou por largar o trabalho sexual. Rose, que sempre passou fome, organizou um piquenique com salgadinhos, biscoito e sucos para recebê-los. Tirou foto com seus filhos que voltaram para casa. Hoje, ela está bem como há anos não se via. Ela garantiu um mínimo para comer, acolher seus filhos e ajudá-los a sair das ruas e do risco da contaminação.

Outrora uma utopia distante, encarnada na peregrinação do senador Eduardo Suplicy por apoio à causa, hoje a renda básica é uma realidade que, sob o nome de auxílio emergencial, está salvando vidas como a de Rose e da sua família e nos livrando de uma catástrofe sanitária, econômica e social ainda maior. Isso só ocorre porque a pauta passou a ser agenda prioritária de uma vastíssima rede da sociedade civil brasileira. A convicção acerca da importância da renda básica a curto, médio e longo prazo é um dos poucos consensos do campo progressista.

A luta pela permanência do auxílio emergencial tem o potencial de, a um só tempo, promover a tão necessária articulação do campo progressista e democrático e colocar agenda pública no centro do debate. Como me disse a professora da UFRJ Tatiana Roque, vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, a união das esquerdas não se dará no vazio ou no abstrato, mas precisa ser construída sobre uma agenda concreta – e a renda básica demonstra ter o potencial de unir campos distintos.

Políticas de transferência de renda já se mostraram eficazes no combate à extrema pobreza. O debate agora se dá em torno do caráter condicional ou incondicional desses programas. No caso brasileiro, a condição de manter as crianças nas escolas, atrelada ao bolsa família, garantiu diversos avanços na área de educação, cuidados de pré-natal e saúde pública. O combate à pobreza se deu de forma multidimensional.

Mas cresce o coro daqueles que defendem a transferência de renda incondicional, dando o dinheiro diretamente na mão da pessoa, sem cobrar nada em troca. Nesse caso, parte-se do princípio básico que todo mundo deveria ganhar um mínimo para viver. É um direito fundamental, uma linha divisória de dignidade humana – como há décadas Suplicy defende.

Programas de transferência de renda incondicional, existentes em outras partes do mundo, como na China, têm desconstruído preconceitos que as pessoas não sabem usar o dinheiro. O fato é que pesquisas recentes mostram que programas em funcionamento na África, América Latina e Ásia trazem principalmente resultados positivos, como a melhora na saúde, educação e na dieta das famílias, bem como crescimento da economia local.

No Brasil,  o auxílio quebrou a falsa dicotomia entre economia e saúde porque atende a milhões de pessoas que precisam, ao mesmo tempo, de comida na mesa e dinheiro no bolso, como lembra o ativista Preto Zezé. Roque tem insistindo no argumento que o auxílio serve para que as pessoas se livrem do emprego ruim e da superexploração. Significa devolver às pessoas o tempo e a dignidade necessária para que possam atuar em empregos que não considerem degradantes.

O caso de Rose revela que uma renda mínima significa na prática mais que o mínimo: ela garante a autonomia, a gratificação do alívio de não precisar dormir pensando se vai ter o que comer no dia seguinte. O tempo que mulheres como Rose passavam pensando em sobrevivência se transforma no tempo para ficar com os filhos e fazer planos.

Pauta de esquerda

A renda básica é defendida por diversos setores do espectro ideológico. O jornal Financial Times publicou editoriais defendendo a renda básica, e o Fórum Econômico Mundial tem insistido que o programa é a saída para superar a desigualdade exposta pela pandemia.

Apesar dessa ampla defesa, inclusive entre setores liberais e à direita, é um erro primário concluir que, por haver consenso sobre sua importância, a renda básica não seria uma pauta de esquerda. Ela é, sim, uma pauta de esquerda e uma oportunidade rara de a esquerda disputar e liderar o desenho da implementação dessa política pública.

Em primeiro lugar, é preciso entender as diferenças entre a visão de grupos políticos distintos. Roque explica que os liberais veem a renda básica como uma oportunidade para substituir um estado de bem-estar social, precarizando ainda mais direitos básicos à saúde e à educação, mas mantendo um programa de transferência de renda.

É esse o objetivo de Bolsonaro e Paulo Guedes ao propor o programa batizado de Renda Brasil, que quer substituir o bolsa família e aumentar o repasse. Trata-se de uma clara tentativa de sequestrar a pauta e surfar na popularidade angariada por meio dos auxílios de R$ 600 e R$ 1.200 conquistados pela esquerda e pelas organizações civis – o governo defendeu apenas R$ 200. Como analisou o jornalista Leonardo Sakamoto, a proposta de Bolsonaro troca de seis por meia dúzia e não dá sinais de mexer na política ultraliberal de austeridade. Paulo Guedes não enfrenta o debate que a oposição vem tentando travar: que é preciso taxar os ricos para continuar pagando um valor no mesmo patamar que o auxílio emergencial.

A proposta da esquerda é oposta: trata-se de uma ampliação da rede de proteção e bem-estar social, com foco na garantia de educação, saúde pública e direitos relacionados ao emprego. Tanto Preto Zezé quanto Roque defendem que a luta pela renda básica significa uma janela de oportunidade para pautar e ampliar a agenda pública no Brasil, que há anos vinha se deteriorando por meio políticas de cortes e austeridade. A aprovação do auxílio reuniu 23 partidos, 215 parlamentares a abriu o tão necessário espaço para o debate de outros temas relevantes e sempre adiados, como a questão tributária.

De fato, a campanha pela implementação do auxílio emergencial, que derrotou o Bolsonaro e sua oferta de míseros R$ 200, foi um dos fatos políticos mais positivos ocorridos no Brasil nos últimos anos. Puxada pela Rede Brasileira de Regra Básica, Coalizão Negra por Direitos, Instituto Ethos, Nossas e Inesc, a mobilização contou com a articulação de 160 organizações da sociedade civil, além de políticos e influencers.

A campanha da rede básica só saiu vitoriosa porque foi uma campanha coletiva – e não encarnada na figura de um político ou partido. Mostrou que a democracia brasileira se revigora a partir de uma agenda comum que prioriza a vida e o combate à desigualdade. Foi uma campanha de regeneração e aprendizado democrático, que precisa permanecer. É fundamental olhar para tudo que foi construído em tão pouco tempo.

Restam agora dois desafios urgentes ao campo progressista. O primeiro é conseguir mostrar à sociedade brasileira que o auxílio emergencial não é uma política do governo, mas que derrotou o governo. O segundo é lutar para tornar o auxílio permanente e, uma vez que ele vire uma política central no debate público, disputar um desenho à esquerda do programa que atue, paralelamente, na promoção de mais direitos e provisão de bens públicos.

Rosana Pinheiro-Machado é antropóloga, professora de Desenvolvimento Internacional da University of Bath (Reino Unido).

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