Uma fábrica que perdeu o chão

Carlos Alberto Mattos

Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 30/09/2018

Entre 1975 e 2016, os trabalhadores da fábrica de elevadores Fateleva (a Otis portuguesa) conduziram uma experiência de autogestão, ocupando o lugar dos donos americanos que saíram do país. O empreendimento teve seus dias de glória na década de 1990, mas decaiu e hoje está desfeito. Serviu, porém, como inspiração para A Fábrica de Nada, sucesso em vários festivais e vencedor do prêmio da crítica em Cannes.

O filme de Pedro Pinho e do coletivo Terratreme mistura atores (poucos) e operários desempregados para ficcionalizar a ocupação, na marra, de uma fábrica de elevadores nas redondezas de Lisboa. No subtexto, um comentário sobre a crise do capitalismo na Europa, o fim do estado social e os impasses da desindustrialização.

A Fábrica de Nada é um bicho cinematográfico mutante, que assume formas diversas para dar o seu recado. Começa como um semidocumentário encenado, com os operários resistindo ao desmonte da fábrica e ao processo de reengenharia, que significava demissões em troca de um punhado de euros. Já aí o projeto demonstra seu imenso poder de persuasão, uma vez que o elenco põe em cena suas emoções e convicções pessoais em regime de improvisação controlada.

A entrada em cena de um intelectual de esquerda estrangeiro (alusão a Slavoj Zizek?), que se põe a observar – e, de certa forma, vampirizar – o movimento dos trabalhadores, leva a narrativa a caminhos surpreendentes. De súbito, a situação da fábrica vira tema de um intrincado debate entre pensadores reais, portugueses e franceses, sobre democracia direta e sociedade da mercadoria. Mais repentinamente ainda, os operários irrompem numa inusitada sequência de musical proletário que me lembrou o nosso Sinfonia da Necrópole.

Em paralelo às discussões coletivas e a diversos tipos de vivência dos operários na fábrica ocupada, temos um eixo individual em torno do jovem José Vargas e dos efeitos da incerteza profissional sobre suas relações com a namorada manicure e o pai, um velho pescador que ainda guarda esperanças de revolução (dessa vez, sem cravos) como se esta fosse um tesouro enterrado.

Não são muitos os filmes que nos colocam no centro de um contexto tão sério sem abdicar do humor, da surpresa e das contradições inerentes. A Fábrica de Nada não simplifica a questão da autogestão. Antes a mostra como um modelo a ser repensado no estágio atual das formas de trabalho. São três horas de inteligência cênica e veracidade transformada em arte.

Vejam o trailer do filme:

Carlos Alberto Mattos é um crítico de cinema com 40 anos de estrada. Já passou pelo Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de S. Paulo, O Pasquim e a revista IstoÉ, entre outros veículos. Foi o primeiro programador de cinema do pioneiro Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, e editor da célebre revista Filme Cultura. Tem sete livros publicados sobre cineastas brasileiros, além da coletânea de textos Cinema de Fato: Anotações sobre Documentário.

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