2017: pode o Brasil permanecer referência no combate ao trabalho escravo?

Os últimos três anos têm suscitado muitas dúvidas quanto ao futuro do combate ao trabalho escravo no Brasil.

2014 encerrou com a suspensão da Lista Suja dos empregadores flagrados por trabalho escravo, medida decretada liminarmente pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, a pedido de grandes construtoras e desde então a Lista deixou de ser publicada pelo Ministério do Trabalho, muito embora tenha sido revigorada por nova Portaria lançada nos últimos dias do Governo Dilma com a anuência do STF.

2015 terminou com um verdadeiro tiroteio de setores do Congresso fortemente articulados (as famosas bancadas BBB: bala, boi, bíblia) contra a política brasileira de combate ao trabalho escravo, uma construção corajosa e original iniciada a partir de 1995: no foco já estava e permanece até hoje o  rebaixamento da definição do trabalho escravo (para dela retirar as referências às condições degradantes e à jornada exaustiva como constitutivas deste crime), bem como a liberação total da terceirização.

2016 apresenta como destaque o comparecimento do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA e sua inédita condenação, sob a acusação de omissão e negligência no combate ao trabalho escravo. Publicada em 15 de dezembro de 2016, a sentença encerra o Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde contra Estado Brasileiro, que havia sido protocolada em 1998 pela CPT e pelo CEJIL, com base em 12 ocorrências de trabalho escravo no decorrer de 10 anos, envolvendo mais de 300 trabalhadores do Piauí aliciados para aquela fazenda do sul do Pará.

Na Fazenda Brasil Verde, a imposição de condições análogas às de escravo ficou configurada em sucessivas fiscalizações quando foram constatados tráfico de pessoas e escravidão moderna, com robustos indícios tais como: endividamento pelo sistema de barracão, impossibilidade de sair da fazenda, coação física e psicológica, condições degradantes de vida e de trabalho. A Corte obriga o Estado brasileiro a retomar as investigações sobre o caso, a adotar medidas para evitar que a prescrição seja aplicada ao delito de escravidão, e a reparar as vítimas pelos danos imateriais sofridos, pagando indenizações pecuniárias a 127 trabalhadores e a uma trabalhadora.

Além dos 85 resgatados da fiscalização de 2000, que receberão 40 mil dólares cada um (mais de R$ 120 mil, cada), por terem sido submetidos a trabalho escravo e tráfico de pessoas, se somam, em razão da denegação de Justiça, outros 43 trabalhadores resgatados na fiscalização de 1997, os quais receberão 30 mil dólares cada (mais de R$ 90 mil, cada).

Trata-se de uma sentença histórica por ser a primeira vez que a Corte Interamericana julga um caso de trabalho escravo nas Américas, e assim tem oportunidade de definir com clareza o que é escravidão moderna e quais são as obrigações do Estado para acabar com ela.

A sentença é também paradigmática porque reconhece que a violação pelo Estado brasileiro ao direito de não ser submetido a escravidão está inserida em um contexto de discriminação estrutural dos trabalhadores escravizados em razão de sua situação de vulnerabilidade econômica. Uma discriminação que exige políticas públicas consistentes para erradica-la.

Os juízes destacam ainda que essa discriminação foi reiterada quando as vítimas, em busca da reparação de sua dignidade violada, recorreram à Justiça, pleiteando a devida reparação, mas não receberam qualquer resposta do poder Judiciário. Ninguém foi responsabilizado criminalmente nem os trabalhadores indenizados por dano moral coletivo ou individual por terem sido submetidos a jornadas exaustivas, condições degradantes, ameaça, servidão por dívidas e cárcere privado.

A repercussão internacional da condenação e as cobranças logo dirigidas ao Estado foram amplas e imediatas. Vejamos essa manchete da BBC, no dia 22/12/2016: “Por que Brasil parou de divulgar ‘lista suja’ de trabalho escravo tida como modelo no mundo?”. Na mesma semana, acionada pelo Ministério Público do Trabalho e apoiando-se inclusive na decisão da Corte Interamericana (que reconheceu o pioneirismo da legislação brasileira nesta área), a Justiça do Trabalho deu 30 dias para o Ministro do Trabalho voltar a publicar a Lista Suja do trabalho escravo.

Defender a política de erradicação do trabalho escravo

Pode se esperar, neste contexto, que ficará um pouco mais complicado para o governo oriundo do golpe de maio de 2016 dar seguimento aos seus funestos projetos de retrocesso no combate ao trabalho escravo, especialmente quanto à existência da Lista Suja e à manutenção do conceito legal de trabalho escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal.

Na argumentação dos seus detratores, o conceito do 149 não teria clareza e por isso provocaria “insegurança jurídica”. Eles alegam que “jornada exaustiva” e “condições degradantes” são expressões genéricas, de interpretação subjetiva, e pretendem eliminar esses caracterizadores na definição do trabalho escravo (Cf PLC 3842/12, do ex-deputado Moreira Mendes visando alterar a redação do Art.149 CPB e PLS 432/2013, do Senador Romero Jucá, visando instituir uma definição específica, diversa da do Art.149, para efeito de regulamentação da Emenda Constitucional 81 que determina o confisco da propriedade onde for flagrado trabalho escravo).

Por duas vezes, no final de 2015 e início de 2016, o PLS 432/2013 passou perto de ser submetido à votação dos senadores, em regime de emergência. A tentativa só foi barrada pela forte mobilização da sociedade, com a participação destacada de figuras nacionais, a exemplo de Wagner Moura.

Ter em mente esse pano de fundo é mais que necessário para interpretar a evolução recente dos resultados do combate ao trabalho escravo no país.

O combate ao trabalho escravo exige ações que, no seu conjunto, dependem do real empenho do Estado nas diversas vertentes da política pública:

Prevenção: contra a discriminação histórica dos trabalhadores rurais pobres, maior público alvo do trabalho escravo no Brasil (mas a PEC do Teto do orçamento público já veio anunciar a probabilidade do contrário acontecer);

Repressão: implicaria suficiente disponibilidade de equipes de fiscalização (mas continua faltando mais de 1200 auditores fiscais no país);

Punição: mas continua parada a possibilidade legal de confiscar a propriedade de escravagistas, e praticamente inexistente a sanção penal do crime, por meio de condenações à altura da sua gravidade; Reparação e acesso a condições decentes de trabalho (o caso Brasil Verde não é caso isolado: raras são as vítimas que acessam a reparações ou ingressam em programas que possam mudar sua situação de vulnerabilidade. Dá para falar ainda em Reforma Agrária?).

 O trabalho escravo não pode cair na invisibilidade

Em tempos de penúria de recursos para a fiscalização, e de recuo no projeto político de eliminar o trabalho escravo, os números disponíveis – em recuo também – traduzem a menor visibilidade do trabalho escravo entre nós, mais que a sua efetiva redução.

Na última atualização 2016 do quadro da fiscalização móvel, especializada no combate ao trabalho escravo, disponibilizada em 20/12/2016 pela DETRAE/MT, consta a realização de 66 operações envolvendo a fiscalização de 158 estabelecimentos, de um total de 120 operações organizadas durante o ano (a diferença de 54 operações corresponde às fiscalizações cujas conclusões ainda não foram finalizadas ou relatadas à DETRAE). Por comparação, a média anual de fiscalização dos últimos 14 anos foi de 261 estabelecimentos e a dos últimos 3 anos, de 293. Foram identificadas 559 pessoas em condição análoga à de escravo (em 2015: 1.155; em 2014: 1.660); dentre elas, 545 foram resgatadas (em 2015: 857; em 2014: 1.468).

Do total de 158 fiscalizações, 65 foram realizadas por equipes regionais do MT (SRTE) e 93 pelo Grupo Móvel nacional, o que sinaliza uma queda importante das fiscalizações realizadas pelas regionais (em 2015 elas realizaram 158 fiscalizações de denúncias de trabalho escravo e o GM: 119). Os números definitivos de 2016 devem sofrer ainda várias alterações.

Computando apenas as denúncias de trabalho escravo recebidas pela Campanha da CPT e os demais casos que, quando fiscalizados, revelaram a existência de trabalho escravo, a CPT, para 2016, em contagem ainda provisória, contabiliza 98 casos de trabalho escravo, envolvendo 968 pessoas, contra 120 casos e 2.321 pessoas em 2015. Destas pessoas, 718 foram libertadas em 2016 (contra 895 em 2015), números que apresentam pequenas diferenças em relação aos da DETRAE, por incluírem dados eventuais de outras instituições ou/e dados ainda não computados pelo Ministério do Trabalho.

Geograficamente, os estados com maior número de casos em 2016 foram: BA (14), MG e PA (13 cada), MA (11), MT, PI e RJ (6 cada), SP e MS (4 cada). Em 2015, os 7 primeiros colocados eram: MG (19), RJ (16), MT (11), PA e TO (10), MA (9), SP (6). Ordenados conforme o número de libertados, temos: MG (138 libertados em 2016 contra 221 em 2015), PI (105; 29); MS (82; 25); PA (74; 36); BA (65; 6); SP (50; 76); MA (49; 107); RR (3; 1). Nos estados de RJ, CE, AM, SC e MT onde em 2015 houve resgates importantes (de 40 a 80 pessoas em cada um), os resgates foram menores em 2016: RJ(13), CE (3), AM (6), SC (4) e MT (22). E o estado de RR passou de 1 libertado em 2015 para 3 em 2016. A Amazônia Legal foi palco de 44% dos casos identificados em 2016, porém apenas 27% dos resgates foram realizados nessa área.

Os setores de atividade afetados por trabalho escravo foram majoritariamente rurais: 70% dos casos, 72% dos resgates, com predominância na pecuária (193 libertados entre: AC, AM, BA, GO, MA, MG, MS, MT, PA, PR, RO, RR, TO), na cultura do café (100; MG, BA e PA), na madeira (61; MG, PA, PI, MT, MS, SC), no extrativismo vegetal (60; PI, MG), no carvão vegetal (45; PI, MS). Nas atividades não agrícolas, predominou a construção civil (75; AM, BA, CE, MA, MG, PA, SP), comércio e serviços (100; AM, BA, CE, GO, MT, PA, RJ, RS, SP). Na confecção foi encontrado apenas um caso, em SP (4 lib.). Os estados com mais estabelecimentos fiscalizados foram PA, MG, MT, RJ, TO, BA, PR, totalizando 114 fiscalizações; nos estados do PA, MA, MT e TO, o número de fiscalizações realizadas em 2016 está entre 40 e 60% abaixo da média dos 13 anos anteriores.

 A ONU recomenda ao Brasil: não desista

O Escritório das Nações Unidas no Brasil lançou em abril de 2016 um Documento sobre o combate ao trabalho escravo no país. Nele destaca que, apesar dos avanços no âmbito das políticas brasileiras para erradicação do trabalho escravo, muito mais precisa ser feito. E vê com muita preocupação o atual questionamento do conceito legal de trabalho escravo, o qual considera “como uma referência legislativa para o tema, [estando] em consonância com as Convenções [da OIT]”. “O Brasil se destacou em um cenário contemporâneo onde o termo “trabalho escravo” perpassa a noção de mera ausência de liberdade, para refletir também aquilo que é sonegado aos trabalhadores com tamanha exploração: sua condição de seres humanos, dotados de sonhos e esperanças”.

O cenário é de evidente agravação da pressão dos setores que há anos procuram flexibilizar os direitos dos trabalhadores e a legislação do trabalho, eliminando tudo aquilo que consideram ser entrave à livre exploração e à maximização da rentabilidade de seus empreendimentos: liberação incondicional da terceirização das relações de trabalho; preponderância do negociado sobre o legislado na efetivação dos direitos; redução da definição legal do trabalho escravo; fragilização da inspeção do trabalho, tanto quantitativamente quanto qualitativamente. Em resumo: abrindo a porta ao recrudescimento do trabalho escravo.

Neste contexto, as recomendações formuladas pelo Escritório da ONU no Brasil resumem de forma adequada os anseios da sociedade civil e de todos os setores empenhados na erradicação efetiva do trabalho escravo:

  1. A manutenção, pelo Poder Legislativo, do conceito atual de “trabalho escravo”, previsto no Código Penal Brasileiro (Art. 149), por estar em consonância com os instrumentos internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil, a exemplo das Convenções n. 29 e 105 da OIT, e a consequente rejeição de propostas legislativas que tenham por objeto reduzir a abrangência conceitual do crime;
  2. A reativação do Cadastro de Empregadores flagrados explorando mão de obra escrava, comumente reconhecido por “Lista Suja”, por ser um instrumento de transparência, controle social e propulsor da responsabilidade social empresarial;
  3. O fortalecimento e o incremento da carreira da inspeção do trabalho, indispensável ao enfrentamento ao trabalho escravo;
  4. O fortalecimento de programas de referenciamento e assistência às vítimas atualmente existentes, por meio de criação de políticas públicas específicas, integradas e efetivas;
  5. A investigação, julgamento, punição e execução das sentenças condenatórias de maneira célere e efetiva pelo Sistema de Justiça Criminal, tendo em vista que a impunidade ainda é um dos fatores que favorecem a existência do crime;
  6. A ratificação da Convenção sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das Suas Famílias.
  7. A observância aos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos por parte do Estado e empresas, principalmente através do fortalecimento do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo;
  8. A ratificação do Protocolo Adicional à Convenção n. 29 da OIT.

Com suas equipes presentes em todas as regiões, a CPT continuará assumindo e cobrando a tempo e a contratempo a defesa intransigente dos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras mais vulneráveis, no campo e na cidade. Em 2017, daremos início a um novo programa de combate ao trabalho escravo, batizado “Raice” (Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão).

* Esta matéria foi originalmente publicado na Comissão Pastoral da Terra e pertence a Campanha da CPT ‘De Olho Aberto para não Virar Escravo.

Fonte: Justificando, com Comissão Pastoral da Terra
Texto: Xavier Plassat
Data origina da publicação: 11/01/2017

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